Em 1999, este filme encantou Cannes (que o
agraciou com a Palma de Ouro) ao apresentar o estilo radical dos Irmãos
Dardenne; adeptos do neo-realismo italiano, seus filmes capturam o frenesi
realista da rotina do proletariado, as agonias diárias do cidadão comum, em
encenações que enfatizam a autenticidade nua e crua. A câmera na mão é uma
constante.
“Rosetta” já se inicia assim, trêmulo e
orgânico, ao flagrar a personagem-título (Émilie Dequenne, também ela vencedora
do prêmio de Melhor Atriz em Cannes) lutando por um emprego que está às raias
de perder. É comum –sobretudo, nesse início, em que ainda não nos adaptamos à
narrativa –vermos o ombro dos atores, por cima dos quais assistimos para onde
estão indo, sempre com solavancos constantes de câmera.
A jovem Rosetta me lembra quase uma música de
Gabriel, O Pensador: “O Resto do Mundo”.
Ela não chega a ser uma indigente nem nada, mas
sua situação é mais periclitante que as situações periclitantes de pobreza na
França; enquanto os moradores de classe baixa amargam um emprego de baixa renda
insatisfatório e injusto, Rosetta sonha em ter esse emprego!
Por infortúnio –numa daquelas manobras
impiedosas e até sádicas com as quais realizadores de melodrama sempre costumam
tratar seus personagens –tal emprego, tão almejado, parece sempre ao alcance
dela, mas nunca está ali de fato; Rosetta, quando muito, passa com louvor pela
fase da experiência, porém, um contratempo sempre lhe tira a chance. Seja um
familiar que o empregador resolveu privilegiar, seja a falta de necessidade de
um funcionário a mais.
Em algum momento, Rosetta irá refletir, ela
própria, esse sadismo, essa impiedade com a qual é tratada pela vida (e pelos
próprios diretores); mas, estou me apressando...
O dia-a-dia de Rosetta é o que ocupa grande parte
da narrativa do filme que ela protagoniza. Os Dardenne não economizam detalhes
peculiares para ilustrar sua precariedade: Seja as botas que ela
invariavelmente tem de calçar para poder chegar ao trailer onde mora,
localizado num terreno úmido, feio e lamacento; seja nos subterfúgios que ela
precisa empregar para conseguir comida (os anzóis que ela volta e meia checa em
busca de peixes); ou até mesmo a complicada relação com a mãe que, instável e
alcoólatra, revela-se presa fácil para os aproveitadores de plantão.
Não é à toa que, diante disso tudo, Rosetta
ostente uma feição de angústia e descontentamento todo o tempo. Tão
impenetrável se mostra ela que as investidas cheias de boas intenções de Riquet
(Fabrizio Rongione), o vendedor de waffles no mais recente emprego que Rosetta
tentou, sequer despertam nela algum interesse.
Riquet é um personagem dedicado. Parece
genuinamente enamorado de Rosetta e a narrativa também se ocupa de seus
esforços em romper a couraça de apatia que a envolve.
Os Dardenne, contudo, não têm interesse em
romantismo e usam exatamente essas expectativas errôneas do público para
promover uma pequena e notável guinada no filme –justamente aquela que elevará
“Rosetta” de um mero retrato neo-realista das aflições proletárias, para um
conto de poderoso questionamento moral: O quê é bom ou ruim quando tudo o que
devemos fazer é tentar trabalhar e sobreviver?
“Rosetta” não fornece
resposta –na verdade, deixar o expectador sem resposta num reflexivo choque
inconcluso é o objetivo de seu inusitado e agridoce final.
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