quinta-feira, 17 de maio de 2018

Rosetta

Em 1999, este filme encantou Cannes (que o agraciou com a Palma de Ouro) ao apresentar o estilo radical dos Irmãos Dardenne; adeptos do neo-realismo italiano, seus filmes capturam o frenesi realista da rotina do proletariado, as agonias diárias do cidadão comum, em encenações que enfatizam a autenticidade nua e crua. A câmera na mão é uma constante.
“Rosetta” já se inicia assim, trêmulo e orgânico, ao flagrar a personagem-título (Émilie Dequenne, também ela vencedora do prêmio de Melhor Atriz em Cannes) lutando por um emprego que está às raias de perder. É comum –sobretudo, nesse início, em que ainda não nos adaptamos à narrativa –vermos o ombro dos atores, por cima dos quais assistimos para onde estão indo, sempre com solavancos constantes de câmera.
A jovem Rosetta me lembra quase uma música de Gabriel, O Pensador: “O Resto do Mundo”.
Ela não chega a ser uma indigente nem nada, mas sua situação é mais periclitante que as situações periclitantes de pobreza na França; enquanto os moradores de classe baixa amargam um emprego de baixa renda insatisfatório e injusto, Rosetta sonha em ter esse emprego!
Por infortúnio –numa daquelas manobras impiedosas e até sádicas com as quais realizadores de melodrama sempre costumam tratar seus personagens –tal emprego, tão almejado, parece sempre ao alcance dela, mas nunca está ali de fato; Rosetta, quando muito, passa com louvor pela fase da experiência, porém, um contratempo sempre lhe tira a chance. Seja um familiar que o empregador resolveu privilegiar, seja a falta de necessidade de um funcionário a mais.
Em algum momento, Rosetta irá refletir, ela própria, esse sadismo, essa impiedade com a qual é tratada pela vida (e pelos próprios diretores); mas, estou me apressando...
O dia-a-dia de Rosetta é o que ocupa grande parte da narrativa do filme que ela protagoniza. Os Dardenne não economizam detalhes peculiares para ilustrar sua precariedade: Seja as botas que ela invariavelmente tem de calçar para poder chegar ao trailer onde mora, localizado num terreno úmido, feio e lamacento; seja nos subterfúgios que ela precisa empregar para conseguir comida (os anzóis que ela volta e meia checa em busca de peixes); ou até mesmo a complicada relação com a mãe que, instável e alcoólatra, revela-se presa fácil para os aproveitadores de plantão.
Não é à toa que, diante disso tudo, Rosetta ostente uma feição de angústia e descontentamento todo o tempo. Tão impenetrável se mostra ela que as investidas cheias de boas intenções de Riquet (Fabrizio Rongione), o vendedor de waffles no mais recente emprego que Rosetta tentou, sequer despertam nela algum interesse.
Riquet é um personagem dedicado. Parece genuinamente enamorado de Rosetta e a narrativa também se ocupa de seus esforços em romper a couraça de apatia que a envolve.
Os Dardenne, contudo, não têm interesse em romantismo e usam exatamente essas expectativas errôneas do público para promover uma pequena e notável guinada no filme –justamente aquela que elevará “Rosetta” de um mero retrato neo-realista das aflições proletárias, para um conto de poderoso questionamento moral: O quê é bom ou ruim quando tudo o que devemos fazer é tentar trabalhar e sobreviver?
“Rosetta” não fornece resposta –na verdade, deixar o expectador sem resposta num reflexivo choque inconcluso é o objetivo de seu inusitado e agridoce final.

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