segunda-feira, 16 de abril de 2018

Hábito Negro

A escolha do diretor australiano Bruce Beresford para dar seqüência ao seu premiado “Conduzindo Miss Daisy” foi audaz; ele enveredou para o norte, nas imediações do Alasca e, em termos cronológicos, regressou ao ano de 1734, para retratar a brutal rotina de missionários que arcaram com a árdua tarefa de levar o catolicismo aos indígenas nativos daquelas montanhas.
Ao contrário de “A Missão”, ou “Dança ComLobos”, onde a relação entre os brancos e os índios é definida por grande camaradagem de ambas as partes, o filme de Beresford se propõe contundente no registro hostil do repúdio que as comunidades mais longínquas de nativos possuíam pelos invasores –a história mostra que eles não estavam tão errados assim nesse julgamento.
O martirizado Laforgue (Lothaire Bluteau, de “Jesus de Montreal”) é um desses missionários. Ciente –e ocasionalmente angustiado –das profundas renúncias materiais, físicas e afetivas que sua escolha teológica lhe impôs, ele vai para as fronteira do Canadá, onde os católicos encontram resistência entre o estranhamento natural e a repulsa completa para pregar sua crença aos habitantes regionais. Uma cena é particularmente ilustrativa dessa circunstância: Agrupados e boquiabertos dezenas de indígenas contemplam um relógio como quem observa um maquinário alienígena, apenas aguardando o momento em que verão, estupefatos, o ponteiro dos minutos realizar um tímido movimento.
Crédulo da benevolência de sua missão, Laforgue acompanha uma expedição que adentra os territórios inóspitos e inexplorados do Canadá, onde residem tribos tão perigosas quanto primitivas. Em meio ao igualmente pouco civilizado grupo (eram, afinal, homens desbravadores do século XVIII) está o único amigo de Laforgue, Daniel (Aden Young), e a índia Annuka (Sandrine Holt, de “Rapa Nui-Uma Aventura No Paraíso”, belíssima) que exerce em todos uma atração de diferentes repercussões: Para Laforgue, ela é ali, a fonte de suas mais indeléveis tentações; para Daniel, que vê seus avanços serem correspondidos, ela é o fogo que o aquece naquele mundo gelado; e para o restante da expedição, ela representa duas inspirações conflitantes –um indivíduo que desejam por sua formosura de mulher, mas que rechaçam por sua etnia compartilhada com o inimigo.
Sequer há tempo de Beresford explorar essa rica dinâmica: Em terras desconhecidas, o grupo é atacado, dizimado e, logo, reduzido aos poucos protagonistas. Estes experimentam formas ainda mais brutais de tortura e violação quando são feitos prisioneiros dos indígenas.
A virtude de “Hábito Negro” está na autenticidade com que ele se despe de posturas ideológicas: Não é nem uma denúncia da ação nefasta dos colonizadores contra a cultura nativa (por sinal, viés atrelado à “A Missão” e “Dança Com Lobos”); nem tampouco uma vilanização unilateral dos índios (caso de boa parte dos faroestes da Velha Hollywood). Na humanização exemplar que pratica de seus personagens, o filme de Beresford observa a realidade como um conjunto de forças em choque, tão mais terrível e irreversível, quando tais forças se afastam da civilização e imbricam, mesmo que norteadas por doutrinas racionais, por fronteiras de imprevisíveis dicotomias.
Por isso mesmo, pela riqueza de sua análise, o final de “Hábito Negro” não oferece qualquer alento, apropriadamente, abandonando seus personagens no ponto mais ameno que sua transtornada odisséia foi capaz de encontrar.

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