Como é de praxe em obras que afrontam com
inapelável contundência os pudores de seu tempo, esta realização do diretor
Michael Sarne é até hoje meio renegada por público e crítica –que o diga o
autor do livro no qual se inspirou, Gore Vidal, que repudiou a adaptação na
época de seu lançamento.
De fato, apreciar integralmente seus desvarios
é algo complicado, mas, há certo mérito no filme que inclui uma Rachel Welch
deslumbrante e afiada na composição inspiradíssima que ela faz de sua suculenta
personagem.
Sem a menor intenção de esconder, já na
primeira cena, seu teor controverso, “Homem & Mulher Até Certo Ponto”
inicia-se com uma surreal operação de mudança de sexo (!): Sob aplausos do que
parece uma platéia –numa referência, talvez, ao estilo espalhafatoso e
metalingüístico de Federico Fellini –o personagem Myron Breckinridge (Rex Reed)
se submete à tal cirurgia, mostrada de tal forma descabida que duvidamos se
aquilo pertence à realidade. Em seguida, quando os créditos iniciais surgem na
tela, vemos o mesmo personagem numa despojada cena musical dançando pelas ruas
de L.A. ao lado da maravilhosa Rachel Welch. Embora o filme busque confundir o
expectador em muitos momentos com um jogo cênico mal-explicado de identidades,
logo fica claro que a personagem de Rachel e o de Rex Reed são a mesma pessoa:
Ela é quem ele se tornou após a operação (!). Por isso, ela se apresenta como
Myra Breckinridge para seu tio milionário e cafajeste, o ex-cowboy de cinema
Buck Loner interpretado pelo diretor John Huston, arriscando-se como ator (a
atuação mais lembrada dele é como o manipulador e repulsivo vilão de
“Chinatown”).
Buck –que enriqueceu prestando cursos para
candidatos a astros e estrelas de cinema numa espécie de academia –até
desconfia dela (que se diz viúva de seu sobrinho) quando aparece para reclamar
a herança, porém, tão astuta e esperta Myra se revela que não existem muitas
tramóias que o velho possa fazer para ludibriá-la.
Nesse meio tempo, conforme se instala no lugar
como uma das instrutoras, Myra dá continuidade a outro plano seu: O de minar o
conceito arraigado de masculinidade na sociedade patriarcal (!?!), o quê para
ela inclui dar um jeito de estuprar o másculo galã do lugar (Roger Herren) e
seduzir sua ingênua namorada loira-burra (Farrah Fawcet, ainda bem jovem).
Tudo isso, não só encenado com uma displicência
cômica e atrevida (na qual a ótima atuação de Rachel se mostra o exemplo de
maior perfeição) como também intercalado por cenas de inúmeros outros filmes,
famosos e obscuros –há seqüências de “O Gordo e O Magro” e até de um dos
primeiros sucessos de Rachel Welch, “Um Milhão de Anos Antes de Cristo” –que, de
uma forma ou de outra, comentam a situação sempre com a mais implacável das
ironias.
E antes que eu me esqueça, há também a
personagem impagável e inconfundível de Mae West como uma agente publicitária
insaciável e famosa por levar todos os atores jovens que encontra para a cama
(atenção para uma ponta breve de Tom Selleck, anos antes do sucesso da série
“Magnum”). Essa personagem permanece paralela ao núcleo principal durante boa
parte do filme, deixando o expectador com a pulga atrás da orelha: Só a partir
da metade que todos os protagonistas começam a interagir, e ainda assim sem
maiores propósitos (!).
Despudorado, malicioso,
talvez até pretensioso, ocasionado por lapsos de lógica que podem ou não ser
até propositais e quase à beira do experimental, “Homem & Mulher Até Certo
Ponto” é, no fundo, um filme que busca apontar a hipocrisia nas posturas
discursivas do dia-a-dia com uma pitada de transgressão e doses cavalares de
deboche.
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