domingo, 13 de maio de 2018

Homem & Mulher Até Certo Ponto


Como é de praxe em obras que afrontam com inapelável contundência os pudores de seu tempo, esta realização do diretor Michael Sarne é até hoje meio renegada por público e crítica –que o diga o autor do livro no qual se inspirou, Gore Vidal, que repudiou a adaptação na época de seu lançamento.
De fato, apreciar integralmente seus desvarios é algo complicado, mas, há certo mérito no filme que inclui uma Rachel Welch deslumbrante e afiada na composição inspiradíssima que ela faz de sua suculenta personagem.
Sem a menor intenção de esconder, já na primeira cena, seu teor controverso, “Homem & Mulher Até Certo Ponto” inicia-se com uma surreal operação de mudança de sexo (!): Sob aplausos do que parece uma platéia –numa referência, talvez, ao estilo espalhafatoso e metalingüístico de Federico Fellini –o personagem Myron Breckinridge (Rex Reed) se submete à tal cirurgia, mostrada de tal forma descabida que duvidamos se aquilo pertence à realidade. Em seguida, quando os créditos iniciais surgem na tela, vemos o mesmo personagem numa despojada cena musical dançando pelas ruas de L.A. ao lado da maravilhosa Rachel Welch. Embora o filme busque confundir o expectador em muitos momentos com um jogo cênico mal-explicado de identidades, logo fica claro que a personagem de Rachel e o de Rex Reed são a mesma pessoa: Ela é quem ele se tornou após a operação (!). Por isso, ela se apresenta como Myra Breckinridge para seu tio milionário e cafajeste, o ex-cowboy de cinema Buck Loner interpretado pelo diretor John Huston, arriscando-se como ator (a atuação mais lembrada dele é como o manipulador e repulsivo vilão de “Chinatown”).
Buck –que enriqueceu prestando cursos para candidatos a astros e estrelas de cinema numa espécie de academia –até desconfia dela (que se diz viúva de seu sobrinho) quando aparece para reclamar a herança, porém, tão astuta e esperta Myra se revela que não existem muitas tramóias que o velho possa fazer para ludibriá-la.
Nesse meio tempo, conforme se instala no lugar como uma das instrutoras, Myra dá continuidade a outro plano seu: O de minar o conceito arraigado de masculinidade na sociedade patriarcal (!?!), o quê para ela inclui dar um jeito de estuprar o másculo galã do lugar (Roger Herren) e seduzir sua ingênua namorada loira-burra (Farrah Fawcet, ainda bem jovem).
Tudo isso, não só encenado com uma displicência cômica e atrevida (na qual a ótima atuação de Rachel se mostra o exemplo de maior perfeição) como também intercalado por cenas de inúmeros outros filmes, famosos e obscuros –há seqüências de “O Gordo e O Magro” e até de um dos primeiros sucessos de Rachel Welch, “Um Milhão de Anos Antes de Cristo” –que, de uma forma ou de outra, comentam a situação sempre com a mais implacável das ironias.
E antes que eu me esqueça, há também a personagem impagável e inconfundível de Mae West como uma agente publicitária insaciável e famosa por levar todos os atores jovens que encontra para a cama (atenção para uma ponta breve de Tom Selleck, anos antes do sucesso da série “Magnum”). Essa personagem permanece paralela ao núcleo principal durante boa parte do filme, deixando o expectador com a pulga atrás da orelha: Só a partir da metade que todos os protagonistas começam a interagir, e ainda assim sem maiores propósitos (!).
Despudorado, malicioso, talvez até pretensioso, ocasionado por lapsos de lógica que podem ou não ser até propositais e quase à beira do experimental, “Homem & Mulher Até Certo Ponto” é, no fundo, um filme que busca apontar a hipocrisia nas posturas discursivas do dia-a-dia com uma pitada de transgressão e doses cavalares de deboche.

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