segunda-feira, 2 de julho de 2018

A Fera da Guerra


O cinema comercial dos EUA sempre refletiu uma postura propagandista de sua ideologia política. Contudo, se pararmos para pensar o quanto ideologias são mutáveis com o passar do tempo e ao sabor das transformações do mundo, podemos flagrar, em algumas dessas obras, características que hoje soam das mais irônicas.
Dentre tantos filmes de guerra concebidos no cinema americano, esse é um caso que se mostra especialmente curioso em “A Fera da Guerra”, que o competente artesão Kevin Reynolds lançou em 1988.
 Ambientada no Afeganistão, em 1981, o segundo ano da intervenção soviética à região, o filme não possui personagens norte-americanos. Relata, em vez disso, a oposição entre os revoltados camponeses afegãos e um tanque russo desgarrado de seu grupo após um ataque a um vilarejo.
Tendenciosamente, embora representem os protagonistas da trama, os personagens que integram a guarnição do tanque, em sua primeira aparição, sequer ganham traços humanos: São mostrados sob os uniformes, com máscaras de gases impessoais e frívolas. Os guerrilheiros afegãos, por outro lado –num exemplo que dificilmente pode ser visto em alguma produção americana atual –possuem um retrato simpático: O líder deles, o heróico, relutante e perplexo Raj (Steven Bauer) só não ganha o protagonismo do filme porque o diretor Reynolds está mesmo interessado no tenso choque de personalidades dentro do tanque.
Conforme adentram o deserto tentando escapar da perseguição dos guerrilheiros, os cinco ocupantes do tanque pressentem um atrito iminente. O irascível comandante Daskal (George Dzunda, um coadjuvante de carreira nos anos 1980) começa a perder as estribeiras diante de sua prepotência e suas neuroses de batalha, e a presença de um imigrante afegão entre eles, o ex-patriado Samad (Erick Averi) potencializa ainda mais sua insanidade.
Os outros soldados são o inconsequente Kaminski (Don Harvey), o assustado Golikov (Stephen Baldwin) e o condutor do tanque Koverchenko (Jason Patric), o único disposto a manter a sensatez até o fim, decisão que o colocará em rota de colisão com seu oficial.
O grupo de personagens russos, portanto, são vilões em potencial prestes a sucumbir a suas fraquezas (com a exceção de Samad e Koverchenko).
Com a Guerra Fria em curso –e o antagonismo aos russos mais em voga do que nunca –o cinema americano assim não perderia a oportunidade de mostrá-los como seres hostis, paranóicos e beligerantes, em contraparte aos afegãos carismáticos e cheios de nobres motivações –e, nesse sentido, a peça de William Mastrosimone, “Nanawatai”, na qual este filme se baseia, caiu como uma luva para seus propósitos.
Felizmente, a despeito desse dado demagógico –que, hoje, justamente graças às mudanças ideológicas proporcionadas por eventos das últimas décadas (incluindo o 11 de setembro e a Guerra ao Iraque) soa tão curioso quanto inusitado –o diretor Reynolds soube dar ao filme um tratamento perene de grande realização cinematográfica onde as inclinações políticas são infinitamente menos importantes que a intensidade dramática, objetiva e contundente, por meio da qual os conflitos se desenvolvem.
Uma vez despido de posturas políticas, “A Fera da Guerra”, permanece um belo trabalho.

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