O cinema comercial dos EUA sempre refletiu uma
postura propagandista de sua ideologia política. Contudo, se pararmos para
pensar o quanto ideologias são mutáveis com o passar do tempo e ao sabor das
transformações do mundo, podemos flagrar, em algumas dessas obras,
características que hoje soam das mais irônicas.
Dentre tantos filmes de guerra concebidos no
cinema americano, esse é um caso que se mostra especialmente curioso em “A Fera
da Guerra”, que o competente artesão Kevin Reynolds lançou em 1988.
Ambientada no Afeganistão, em 1981, o segundo
ano da intervenção soviética à região, o filme não possui personagens
norte-americanos. Relata, em vez disso, a oposição entre os revoltados
camponeses afegãos e um tanque russo desgarrado de seu grupo após um ataque a
um vilarejo.
Tendenciosamente, embora representem os
protagonistas da trama, os personagens que integram a guarnição do tanque, em
sua primeira aparição, sequer ganham traços humanos: São mostrados sob os
uniformes, com máscaras de gases impessoais e frívolas. Os guerrilheiros
afegãos, por outro lado –num exemplo que dificilmente pode ser visto em alguma
produção americana atual –possuem um retrato simpático: O líder deles, o
heróico, relutante e perplexo Raj (Steven Bauer) só não ganha o protagonismo do
filme porque o diretor Reynolds está mesmo interessado no tenso choque de personalidades
dentro do tanque.
Conforme adentram o deserto tentando escapar da
perseguição dos guerrilheiros, os cinco ocupantes do tanque pressentem um
atrito iminente. O irascível comandante Daskal (George Dzunda, um coadjuvante
de carreira nos anos 1980) começa a perder as estribeiras diante de sua
prepotência e suas neuroses de batalha, e a presença de um imigrante afegão
entre eles, o ex-patriado Samad (Erick Averi) potencializa ainda mais sua
insanidade.
Os outros soldados são o inconsequente Kaminski
(Don Harvey), o assustado Golikov (Stephen Baldwin) e o condutor do tanque
Koverchenko (Jason Patric), o único disposto a manter a sensatez até o fim,
decisão que o colocará em rota de colisão com seu oficial.
O grupo de personagens russos, portanto, são
vilões em potencial prestes a sucumbir a suas fraquezas (com a exceção de Samad
e Koverchenko).
Com a Guerra Fria em curso –e o antagonismo aos
russos mais em voga do que nunca –o cinema americano assim não perderia a
oportunidade de mostrá-los como seres hostis, paranóicos e beligerantes, em
contraparte aos afegãos carismáticos e cheios de nobres motivações –e, nesse
sentido, a peça de William Mastrosimone, “Nanawatai”, na qual este filme se
baseia, caiu como uma luva para seus propósitos.
Felizmente, a despeito desse dado demagógico
–que, hoje, justamente graças às mudanças ideológicas proporcionadas por
eventos das últimas décadas (incluindo o 11 de setembro e a Guerra ao Iraque)
soa tão curioso quanto inusitado –o diretor Reynolds soube dar ao filme um tratamento
perene de grande realização cinematográfica onde as inclinações políticas são
infinitamente menos importantes que a intensidade dramática, objetiva e
contundente, por meio da qual os conflitos se desenvolvem.
Uma vez despido de posturas políticas, “A Fera
da Guerra”, permanece um belo trabalho.
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