Toda a filmografia de Alejandro Jodorowski é
tão assim definida por simbolismos em profusão que não dá para avaliar sua obra
nos mesmos termos que faríamos com um filme comum. Muito pouco de sua narrativa
surge empregada para atender aos expedientes básicos de uma história, em lugar
disso, temos impressões refletidas em jornadas de tão insano surrealismo que
sua razão de ser está aberta a infindáveis interpretações.
Os protagonistas do filme, os jovens Fando
(Sergio Kleiner) e Lis (Diana Mariscal), são um casal de namorados (ou talvez
nem isso). Ela, paralítica e de uma coloração albina que quase ofusca a
fotografia preto & branco. Ele a carrega por todo o caminho quando decidem
encontrar a lendária cidade de Tar –segundo o prólogo, Tar é um lugar sagrado
nos qual os bem-aventurados que a encontram tomam pleno conhecimento do que é a
felicidade e o amor.
Primeira parte (ou, primeiro canto, como afirma
o inter-título); A empurrar Lis, Fando chega a um local de escombros onde ambos
são distraídos por figuras metafóricas. A intercalar esse momento, o diretor
coloca cenas do que talvez seja a infância dos protagonistas: Um menino
(Fando?) indaga a um velho questões pueris, no entanto, pertinentes, acerca da
mortalidade; uma menina (Lis?) recorda-se, feliz, de uma peça de teatro de
marionetes, até que, capturada nos bastidores, é ela própria submetida a uma
tentativa de transformação em uma marionete.
Na segunda parte, seguindo o caminho, o casal
encontra um velho monge em delírio, e pouco depois, uma mulher grávida e nua
que lhe inspira adorado fascínio. Ao ser questionado sobre o caminho para Tar,
ele perde-se em devaneios enquanto aponta corpos que podem estar mortos ou
dormentes, para então afirmar que “aqueles que dormem se levantarão como
sonâmbulos”; com efeito, dezenas de indivíduos se levantam de um fosso. Seus
corpos besuntados de lama da cabeça aos pés.
Acometido de súbita insatisfação, Fando deixa
Lis largada em meio à uma pedreira. Numa andança solitária, ele encontra três
senhoras de avançada idade jogando pôquer (!); a aposta não é em dinheiro, mas
em frutas em cauda que elas tiram de latas. A vencedora leva as frutas com as
quais pode satisfazer, para inveja das perdedoras, um homem mais jovem e
hedonista, refestelado num divã ao lado.
Fando encontra outras mulheres. Representações
ironicamente femininas de vícios masculinos que o afrontam, inclusive, com a
visão de seu próprio pai no túmulo que, reanimado e sedento de prazer, o coloca
na cova em seu lugar.
A presença de Lis já não parece, para Fando,
assim tão insuportável.
Quando adentramos a terceira parte, o casal
cruza-se com uma procissão de travestis que acabam vestindo Fando em roupas de
mulher, e Lis em roupas de homem. Nesse momento, a narrativa é interrompida (um
flashback, talvez?) para mostrar Fando e Lis num quarto branco, antes dela perder
o movimento das pernas. Eles começam a assinar o nome de um no corpo do outro
até fazerem uma verdadeira algazarra de tinta que converte o que era antes um
quarto branco num local sujo, caótico e tétrico. De volta para a trajetória à
Tar, o casal se cruza com um cego e apoiado num médico. O cego implora por
sangue, o que Lis, em sua comoção, decide atender. Ela permite que o médico lhe
tire sangue do braço depositando numa taça. O médico, no entanto, ludibria o
cego bebendo todo o conteúdo, e dando-lhe a taça vazia para lamber,
prosseguindo assim nessa mendicância.
Após beber, também ele, o sangue de Lis, Fando
encontra o fantasma de sua mãe que inicialmente quase o sufoca na ânsia por
alimentá-lo (com ovos cozidos!), e depois lhe suplica a chance de ser
destruída, numa espécie de apelo por descanso.
Quarta parte. Em seu reencontro com Lis, Fando
testemunha o surgimento alegórico de porcos saídos da vagina dela (!!).
Então ele a deixa completamente nua e permite
que três estranhos se aproximem: Um intelectual, um religioso e um artista –as
inclinações principais da índole humana.
Eles tocam afoitamente o corpo nu de Lis e a
beijam, mas sentem-se de pronto reprimidos quando Fando lhes conta que é sua
noiva: A postura liberal encontrando seu fim num mero paradigma social.
Oscilando entre uma ternura infantil e uma
crueldade abusiva, Fando tenta colocar algemas nos pulsos de Lis, obriga-a a
arrastar-se na terra, a maltrata, em desespero por Tar jamais surgir no
horizonte. Nessa sucessão de sentimentos bipolares, ele acaba a matando.
A multidão que surge em seguida tenta velá-la,
mas Fando termina levando seu corpo para uma sepultura no campo, onde termina
seus dias ansiando –e, de certa forma, também perecendo –por reencontrar Lis e
com ela conversar de novo; no delírio que encerra o filme, seus espíritos
parecem se perder, nus, na floresta, numa alusão melancólica à Adão e Eva.
Sem cenários elaboradas,
praticamente sem cenas internas e feito com deliberada precariedade (o que lhe
ressalta um aspecto rudimentar de ‘parábola do cinema mudo’), “Fando & Lis”
é um amalgama lisérgico, onírico e poético de todas as reflexões absurdistas de
relação homem-mulher.
Nenhum comentário:
Postar um comentário