segunda-feira, 6 de maio de 2019

Fando & Lis

Toda a filmografia de Alejandro Jodorowski é tão assim definida por simbolismos em profusão que não dá para avaliar sua obra nos mesmos termos que faríamos com um filme comum. Muito pouco de sua narrativa surge empregada para atender aos expedientes básicos de uma história, em lugar disso, temos impressões refletidas em jornadas de tão insano surrealismo que sua razão de ser está aberta a infindáveis interpretações.
Os protagonistas do filme, os jovens Fando (Sergio Kleiner) e Lis (Diana Mariscal), são um casal de namorados (ou talvez nem isso). Ela, paralítica e de uma coloração albina que quase ofusca a fotografia preto & branco. Ele a carrega por todo o caminho quando decidem encontrar a lendária cidade de Tar –segundo o prólogo, Tar é um lugar sagrado nos qual os bem-aventurados que a encontram tomam pleno conhecimento do que é a felicidade e o amor.
Primeira parte (ou, primeiro canto, como afirma o inter-título); A empurrar Lis, Fando chega a um local de escombros onde ambos são distraídos por figuras metafóricas. A intercalar esse momento, o diretor coloca cenas do que talvez seja a infância dos protagonistas: Um menino (Fando?) indaga a um velho questões pueris, no entanto, pertinentes, acerca da mortalidade; uma menina (Lis?) recorda-se, feliz, de uma peça de teatro de marionetes, até que, capturada nos bastidores, é ela própria submetida a uma tentativa de transformação em uma marionete.
Na segunda parte, seguindo o caminho, o casal encontra um velho monge em delírio, e pouco depois, uma mulher grávida e nua que lhe inspira adorado fascínio. Ao ser questionado sobre o caminho para Tar, ele perde-se em devaneios enquanto aponta corpos que podem estar mortos ou dormentes, para então afirmar que “aqueles que dormem se levantarão como sonâmbulos”; com efeito, dezenas de indivíduos se levantam de um fosso. Seus corpos besuntados de lama da cabeça aos pés.
Acometido de súbita insatisfação, Fando deixa Lis largada em meio à uma pedreira. Numa andança solitária, ele encontra três senhoras de avançada idade jogando pôquer (!); a aposta não é em dinheiro, mas em frutas em cauda que elas tiram de latas. A vencedora leva as frutas com as quais pode satisfazer, para inveja das perdedoras, um homem mais jovem e hedonista, refestelado num divã ao lado.
Fando encontra outras mulheres. Representações ironicamente femininas de vícios masculinos que o afrontam, inclusive, com a visão de seu próprio pai no túmulo que, reanimado e sedento de prazer, o coloca na cova em seu lugar.
A presença de Lis já não parece, para Fando, assim tão insuportável.

Quando adentramos a terceira parte, o casal cruza-se com uma procissão de travestis que acabam vestindo Fando em roupas de mulher, e Lis em roupas de homem. Nesse momento, a narrativa é interrompida (um flashback, talvez?) para mostrar Fando e Lis num quarto branco, antes dela perder o movimento das pernas. Eles começam a assinar o nome de um no corpo do outro até fazerem uma verdadeira algazarra de tinta que converte o que era antes um quarto branco num local sujo, caótico e tétrico. De volta para a trajetória à Tar, o casal se cruza com um cego e apoiado num médico. O cego implora por sangue, o que Lis, em sua comoção, decide atender. Ela permite que o médico lhe tire sangue do braço depositando numa taça. O médico, no entanto, ludibria o cego bebendo todo o conteúdo, e dando-lhe a taça vazia para lamber, prosseguindo assim nessa mendicância.
Após beber, também ele, o sangue de Lis, Fando encontra o fantasma de sua mãe que inicialmente quase o sufoca na ânsia por alimentá-lo (com ovos cozidos!), e depois lhe suplica a chance de ser destruída, numa espécie de apelo por descanso.
Quarta parte. Em seu reencontro com Lis, Fando testemunha o surgimento alegórico de porcos saídos da vagina dela (!!).
Então ele a deixa completamente nua e permite que três estranhos se aproximem: Um intelectual, um religioso e um artista –as inclinações principais da índole humana.
Eles tocam afoitamente o corpo nu de Lis e a beijam, mas sentem-se de pronto reprimidos quando Fando lhes conta que é sua noiva: A postura liberal encontrando seu fim num mero paradigma social.
Oscilando entre uma ternura infantil e uma crueldade abusiva, Fando tenta colocar algemas nos pulsos de Lis, obriga-a a arrastar-se na terra, a maltrata, em desespero por Tar jamais surgir no horizonte. Nessa sucessão de sentimentos bipolares, ele acaba a matando.
A multidão que surge em seguida tenta velá-la, mas Fando termina levando seu corpo para uma sepultura no campo, onde termina seus dias ansiando –e, de certa forma, também perecendo –por reencontrar Lis e com ela conversar de novo; no delírio que encerra o filme, seus espíritos parecem se perder, nus, na floresta, numa alusão melancólica à Adão e Eva.
Sem cenários elaboradas, praticamente sem cenas internas e feito com deliberada precariedade (o que lhe ressalta um aspecto rudimentar de ‘parábola do cinema mudo’), “Fando & Lis” é um amalgama lisérgico, onírico e poético de todas as reflexões absurdistas de relação homem-mulher.

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