quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A Morte Num Beijo

Originado das fileiras da destemida produção comercial de baixo orçamento dos filmes B, o sub-gênero do film noir comportava inúmeras possibilidades. Era, por exemplo, capaz de abrigar tramas que uniam as concepções mais mirabolantes a um insuspeito realismo que as engessadas produções de estúdio não eram capazes de arcar, e tinha, não obstante uma ou outra limitação, a vantagem de agregar simbolismos que faziam dele quase um parente norte-americano, cínico e popular do Expressionismo Alemão (embora saiba-se que o noir genuíno nasceu mesmo na França).
Todas essas características são manejadas por Robert Aldrich neste formidável “A Morte Num Beijo”, famoso e curioso exemplar do noir acometido justamente por uma quase contradição: É desigual demais para ser um clássico ao mesmo que é, por méritos próprios, marcante demais para ser condicionado ao status de cult.
Numa narrativa inovadora que, nos anos 1950 de então, era quase exclusividade do noir, iniciamos a história já em alta voltagem com a personagem de Cloris Leachman, Christina, correndo, descalça e desamparada, por uma estrada. Aflita, ela chama a atenção dos carros e o único que consegue fazer parar tem como motorista o detetive Mike Hammer (Ralph Meeker) –numa manobra um bocado cara de pau ao arremessar o protagonista dentro da trama da forma mais cuidadosamente descuidada possível!
Os créditos iniciais transcorrem (e, para falar a verdade, um bom tanto do filme também) sem que o diretor nos revele quais são as motivações, afinal, daquela loira misteriosa.
Amparado em cada um dos códigos do film noir, o diretor Robert Aldrich prorroga ao máximo a elucidação dos segredos que se enfileiram, germinando com isso grande parte do suspense que predomina na narrativa.
Christina, obedecendo a cartilha noir é a feme falate que dá o estopim à premissa, mas, numa manobra desconcertante, ela é abandonada pelo filme convertida, logo no começo, em uma vítima do vilão.
Dizer que tal evento introduz o protagonista Mike Hammer no mundo sórdido de meias verdades e segredos do noir não seria uma afirmação inteiramente sincera; como detetive particular, Hammer já conhece bem o bastante os percalços desse mundo de sombras para poder singrar entre elas, desviando-se de algumas armadilhas e caindo em outras.
O que ele ganha com aqueles acontecimentos registrados no prólogo é uma razão para perseguir a verdade: Quem são os homens que mataram Christina? E que tentaram matar o próprio Hammer no processo? De qual terrível segredo ela tinha conhecimento?
No percurso de sua investigação –que conta com personagens peculiares em sua caracterização como Nick (Nick Dennis), o mecânico grego, boa-praça que faz onomatopéias com a boca; o policial Murphy (Wesley Addy) irritante a ponto de sempre repetir, em todo diálogo, a última frase do protagonista; e a secretária e ajudante Velda (Maxine Cooper), uma espécie de paixão não assumida de Hammer que se presta a usar de sua sedução para com outros homens a fim de atingir os objetivos de seu amado –Hammer descobre que Christina havia fugido de um manicômio onde fora internada mesmo em sã consciência por pessoas que a queriam calada.
Hammer sabe, de alguma forma, que uma de suas últimas afirmações (“Lembre-se de mim!”), por mais enigmática que fosse, traz o segredo para a solução dos mistérios; e o encadeamento deles é feito com tanta euforia que é inevitável o roteiro ostentar assim alguns furos.
Na intenção de corresponder ao nível extraordinário de curiosidade que sua trama, na sistemática ocultação de suas verdades, gera no expectador, o filme de Aldrich recorre, já no terço final, a alguns subterfúgios inusitados, quase fantasiosos, para incorporar a amplitude de seus mistérios, incluindo aí uma maleta de conteúdo bastante nebuloso –e que certamente serviu de inspiração tanto na premissa básica de “Ronin”, como principalmente num segmento de “Pulp Fiction-Tempo de Violência”, de Quentin Tarantino, em uma visível referência à este trabalho –conduzindo o filme à um desfecho indicativo de uma moral machista e unilateral que norteava a estética e a ética do noir: A mulher –sempre restringida aos estereótipos de praxe –cuja curiosidade, em níveis simbólicos, a leva à condenação (numa cena que também inspirou diversos momentos da filmografia de David Lynch).
De um viés deliberadamente comercial para seu período que é facilmente perceptível nos dias de hoje, “A Morte Num Beijo” goza hoje de uma posição significativa entre as obras mais prestigiadas oriundas do film noir que foram capazes de superar a ação do tempo e firmarem-se como filmes bons de verdade.

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