Originado das fileiras da destemida produção
comercial de baixo orçamento dos filmes B, o sub-gênero do film noir comportava
inúmeras possibilidades. Era, por exemplo, capaz de abrigar tramas que uniam as
concepções mais mirabolantes a um insuspeito realismo que as engessadas
produções de estúdio não eram capazes de arcar, e tinha, não obstante uma ou
outra limitação, a vantagem de agregar simbolismos que faziam dele quase um
parente norte-americano, cínico e popular do Expressionismo Alemão (embora
saiba-se que o noir genuíno nasceu mesmo na França).
Todas essas características são manejadas por
Robert Aldrich neste formidável “A Morte Num Beijo”, famoso e curioso exemplar
do noir acometido justamente por uma quase contradição: É desigual demais para
ser um clássico ao mesmo que é, por méritos próprios, marcante demais para ser
condicionado ao status de cult.
Numa narrativa inovadora que, nos anos 1950 de
então, era quase exclusividade do noir, iniciamos a história já em alta
voltagem com a personagem de Cloris Leachman, Christina, correndo, descalça e
desamparada, por uma estrada. Aflita, ela chama a atenção dos carros e o único
que consegue fazer parar tem como motorista o detetive Mike Hammer (Ralph
Meeker) –numa manobra um bocado cara de pau ao arremessar o protagonista dentro
da trama da forma mais cuidadosamente descuidada possível!
Os créditos iniciais transcorrem (e, para falar
a verdade, um bom tanto do filme também) sem que o diretor nos revele quais são
as motivações, afinal, daquela loira misteriosa.
Amparado em cada um dos códigos do film noir, o
diretor Robert Aldrich prorroga ao máximo a elucidação dos segredos que se
enfileiram, germinando com isso grande parte do suspense que predomina na
narrativa.
Christina, obedecendo a cartilha noir é a feme
falate que dá o estopim à premissa, mas, numa manobra desconcertante, ela é
abandonada pelo filme convertida, logo no começo, em uma vítima do vilão.
Dizer que tal evento introduz o protagonista
Mike Hammer no mundo sórdido de meias verdades e segredos do noir não seria uma
afirmação inteiramente sincera; como detetive particular, Hammer já conhece bem
o bastante os percalços desse mundo de sombras para poder singrar entre elas,
desviando-se de algumas armadilhas e caindo em outras.
O que ele ganha com aqueles acontecimentos
registrados no prólogo é uma razão para perseguir a verdade: Quem são os homens
que mataram Christina? E que tentaram matar o próprio Hammer no processo? De
qual terrível segredo ela tinha conhecimento?
No percurso de sua investigação –que conta com
personagens peculiares em sua caracterização como Nick (Nick Dennis), o
mecânico grego, boa-praça que faz onomatopéias com a boca; o policial Murphy
(Wesley Addy) irritante a ponto de sempre repetir, em todo diálogo, a última
frase do protagonista; e a secretária e ajudante Velda (Maxine Cooper), uma
espécie de paixão não assumida de Hammer que se presta a usar de sua sedução
para com outros homens a fim de atingir os objetivos de seu amado –Hammer
descobre que Christina havia fugido de um manicômio onde fora internada mesmo
em sã consciência por pessoas que a queriam calada.
Hammer sabe, de alguma forma, que uma de suas
últimas afirmações (“Lembre-se de mim!”), por mais enigmática que fosse, traz o
segredo para a solução dos mistérios; e o encadeamento deles é feito com tanta
euforia que é inevitável o roteiro ostentar assim alguns furos.
Na intenção de corresponder ao nível
extraordinário de curiosidade que sua trama, na sistemática ocultação de suas
verdades, gera no expectador, o filme de Aldrich recorre, já no terço final, a
alguns subterfúgios inusitados, quase fantasiosos, para incorporar a amplitude
de seus mistérios, incluindo aí uma maleta de conteúdo bastante nebuloso –e que
certamente serviu de inspiração tanto na premissa básica de “Ronin”, como
principalmente num segmento de “Pulp Fiction-Tempo de Violência”, de Quentin
Tarantino, em uma visível referência à este trabalho –conduzindo o filme à um
desfecho indicativo de uma moral machista e unilateral que norteava a estética
e a ética do noir: A mulher –sempre restringida aos estereótipos de praxe –cuja
curiosidade, em níveis simbólicos, a leva à condenação (numa cena que também
inspirou diversos momentos da filmografia de David Lynch).
De um viés deliberadamente
comercial para seu período que é facilmente perceptível nos dias de hoje, “A
Morte Num Beijo” goza hoje de uma posição significativa entre as obras mais
prestigiadas oriundas do film noir que foram capazes de superar a ação do tempo
e firmarem-se como filmes bons de verdade.
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