sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

A Regra do Jogo

Por volta de 1939, quando realizou esta versão atualizada da peça teatral, “Les Caprices de Marianne”, de Alfred De Musset, o diretor Jean Renoir (recém-saído dos êxitos “A Grande Ilusão” e “A Besta Humana”) não estava exatamente certo de qual gênero de filme tinha, afinal, desejo de fazer; se uma tragédia, ou uma comédia. Pairando em torno desses opostos tão estranhamente complementares, seu filme é, como ele mesmo dizia, praticamente definido por essa ambivalência.
Há graça e há tristeza –um certo lamento –na história onde acompanhamos a reunião de um grupo burguês numa mansão na qual as festividades avançam noite adentro expondo as características de uma sociedade que agonizava –observação que inspirou, a tal ponto, o diretor Robert Altman que dele fez quase uma refilmagem em seu elogiado “Assassinato Em Gosford Park”.
O jovem piloto André Jurieux (Roland Toutain), alçado ao status de celebridade devido às suas façanhas, evidencia sua pouca desenvoltura em lidar com a mídia ao deixar escapar numa entrevista à rádio indícios de seu caso extraconjugal com a Marquesa de La Cheyniest (Nora Gregor).
Disposto a driblar com classe essa saia-justa aos olhos do público, o Marquês (Marcel Dalio) é aconselhado pelo amigo e moderador social, Octave (vivido pelo próprio Jean Renoir), a convidar Jurieux e diversos outros aristocratas para uma caçada de fim de semana, a ser realizada nas dependências de La Coliniére, seu luxuoso castelo.
Lá, a superfície de refinamento, orgulhosamente ostentada por essa classe, serve de estudo para o impiedoso diretor Renoir que observa, com uma câmera intuitiva de expressões e recursos notadamente modernos (como profundidade de campo e constantes movimentos), além de uma encenação brilhantemente zelosa para com seus ótimos atores, a hipocrisia latente oculta entre gestos ensaiados e maneiras tão polidas quanto dissimuladas –afinal, se o Marquês deseja salvar publicamente sua reputação, ele está por outro lado pouco interessado se sua esposa e Jurieux executam pequenas escapadelas para se encontrarem; ele quer mesmo é acertar os ponteiros com sua amante Geneviève (Mila Parély).
Jean Renoir contrapõe essa falsidade, esse “jogo”, ao comportamento subserviente, porém, mais autêntico de seus empregados, vindos de classes inferiores, não destituindo-os de seus próprios contratempos: A afeição secreta e esquiva entre o criado, e ex-ladrão, Marceau (Julien Carette) e a empregada pessoal de Christine, Lisette (Paulette Dubost), por sua vez casada com o guarda-caça da mansão, Schumacher (Gaston Modot).
Ao desfile de cinismo, no qual encontra um humor cortante, Renoir segue com uma atmosfera subitamente sombria quando um dos convidados acaba morrendo (!), numas das mais notáveis e primorosas modificações de gênero em plena narrativa perpetradas no cinema.
Por muito pouco, “A Regra do Jogo” tornou-se uma daquelas obras cinematográficas fundamentais completamente dada como perdida: Sua postura e sua crítica para com os valores sociais em franca dissolução no fim da década de 1930 não passaram despercebidos aos nazistas, e nem aos franceses –que, no período histórico de então faziam uma espécie de pacto forçado com a Alemanha a fim de ocultar a evidência de sua ocupação –que, indignados com o teor ácido do filme, tentaram censurá-lo (houve até quem tentasse incendiar o cinema que o exibia!), além do quê, as cópias salvaguardadas ainda acabaram destruídas pelos próprios aliados em ataques aéreos mais tarde realizados (!).
A cópia que sobreviveu ao tempo e às turbulências da História é uma recuperação realizada na década de 1950 por fãs da obra-prima de Renoir.
Esta exuberante e implacável versão é a mais próxima do filme original apontado pela crítica especializada, nas últimas décadas, como um dos 10 melhores filmes da história do cinema.

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