Por volta de 1939, quando realizou esta versão
atualizada da peça teatral, “Les Caprices de Marianne”, de Alfred De Musset, o
diretor Jean Renoir (recém-saído dos êxitos “A Grande Ilusão” e “A Besta
Humana”) não estava exatamente certo de qual gênero de filme tinha, afinal,
desejo de fazer; se uma tragédia, ou uma comédia. Pairando em torno desses
opostos tão estranhamente complementares, seu filme é, como ele mesmo dizia,
praticamente definido por essa ambivalência.
Há graça e há tristeza –um certo lamento –na
história onde acompanhamos a reunião de um grupo burguês numa mansão na qual as
festividades avançam noite adentro expondo as características de uma sociedade
que agonizava –observação que inspirou, a tal ponto, o diretor Robert Altman
que dele fez quase uma refilmagem em seu elogiado “Assassinato Em Gosford
Park”.
O jovem piloto André Jurieux (Roland Toutain),
alçado ao status de celebridade devido às suas façanhas, evidencia sua pouca
desenvoltura em lidar com a mídia ao deixar escapar numa entrevista à rádio
indícios de seu caso extraconjugal com a Marquesa de La Cheyniest (Nora
Gregor).
Disposto a driblar com classe essa saia-justa
aos olhos do público, o Marquês (Marcel Dalio) é aconselhado pelo amigo e
moderador social, Octave (vivido pelo próprio Jean Renoir), a convidar Jurieux
e diversos outros aristocratas para uma caçada de fim de semana, a ser
realizada nas dependências de La Coliniére, seu luxuoso castelo.
Lá, a superfície de refinamento, orgulhosamente
ostentada por essa classe, serve de estudo para o impiedoso diretor Renoir que
observa, com uma câmera intuitiva de expressões e recursos notadamente modernos
(como profundidade de campo e constantes movimentos), além de uma encenação
brilhantemente zelosa para com seus ótimos atores, a hipocrisia latente oculta
entre gestos ensaiados e maneiras tão polidas quanto dissimuladas –afinal, se o
Marquês deseja salvar publicamente sua reputação, ele está por outro lado pouco
interessado se sua esposa e Jurieux executam pequenas escapadelas para se
encontrarem; ele quer mesmo é acertar os ponteiros com sua amante Geneviève
(Mila Parély).
Jean Renoir contrapõe essa falsidade, esse
“jogo”, ao comportamento subserviente, porém, mais autêntico de seus
empregados, vindos de classes inferiores, não destituindo-os de seus próprios
contratempos: A afeição secreta e esquiva entre o criado, e ex-ladrão, Marceau
(Julien Carette) e a empregada pessoal de Christine, Lisette (Paulette Dubost),
por sua vez casada com o guarda-caça da mansão, Schumacher (Gaston Modot).
Ao desfile de cinismo, no qual encontra um
humor cortante, Renoir segue com uma atmosfera subitamente sombria quando um
dos convidados acaba morrendo (!), numas das mais notáveis e primorosas
modificações de gênero em plena narrativa perpetradas no cinema.
Por muito pouco, “A Regra do Jogo” tornou-se
uma daquelas obras cinematográficas fundamentais completamente dada como
perdida: Sua postura e sua crítica para com os valores sociais em franca
dissolução no fim da década de 1930 não passaram despercebidos aos nazistas, e
nem aos franceses –que, no período histórico de então faziam uma espécie de
pacto forçado com a Alemanha a fim de ocultar a evidência de sua ocupação –que,
indignados com o teor ácido do filme, tentaram censurá-lo (houve até quem
tentasse incendiar o cinema que o exibia!), além do quê, as cópias
salvaguardadas ainda acabaram destruídas pelos próprios aliados em ataques
aéreos mais tarde realizados (!).
A cópia que sobreviveu ao tempo e às
turbulências da História é uma recuperação realizada na década de 1950 por fãs
da obra-prima de Renoir.
Esta exuberante e
implacável versão é a mais próxima do filme original apontado pela crítica
especializada, nas últimas décadas, como um dos 10 melhores filmes da história
do cinema.
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