quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Bettie Page

Há, em princípio, algo de diferenciado entre este filme e os outros trabalhos da diretora Mary Harron (de obras como “Psicopata Americano”): Uma simpatia bastante genuína para com sua personagem principal, embora ainda assim, seu usual tom cáustico se mantenha.
Ao biografar a Rainha das Pin-Us, Harron aproveita para lançar um olhar cheio de ironia crítica sobre as contradições de uma época, e a forma como, no contraste com o presente, essa mesma época se mostra de traços nostálgicos tão curiosos e improváveis.
Interpretada com vigor e certeza por Gretchen Mol (que faz desta a melhor atuação de sua carreira), a protagonista Bettie Page surge já colhida no furacão de interesses ideológicos que polarizaram os EUA dos anos 1950: De um lado, o conservadorismo ferrenho de políticos que instituíram comitês para julgar atividades que eles supunham por contravenções, do outro, a liberdade de expressão (inclusive no que tange ao erotismo) buscada por profissionais e artistas que especularam os mais diversos meios de mídia, em especial, as revistas fotográficas obscuras e clandestinas, produzidas tão somente para atender a demanda de cidadãos comuns com gostos... peculiares.
Há um flashback (como há em muitos filmes com essa natureza biográfica na trama) e regressamos até os anos 1930, quando descobrimos que, desde a infância até o princípio da vida adulta, nos anos 1940, Bettie já experimentava formas diversas de abuso: Primeiro, do próprio pai, depois do marido (ponta do ator Norman Reedus, da série “The Walking Dead”) com quem teve um rápido e malfadado matrimônio, e até mesmo de desconhecidos, numa sequência particularmente desconcertante.
É notável que desde o início, o filme de Harron já deixa evidente em sua sempre inocente protagonista (apesar das várias facetas de sordidez do mundo que a cerca) um fascínio contumaz e fidedigno pelas virtudes da religião –que ela terminou abraçando no final.
Já entramos no início da década de 1950 quando Bettie decide ir morar em Nova York, inicialmente com planos de fazer um curso de interpretação teatral, ministrado pelo personagem do ator Austin Pendleton (de “Um Amor A Cada Esquina” e “Uma Mente Brilhante”).
Com seu desempenho no curso prosperando a passos de tartaruga e os parcos empregos disponíveis apenas de secretária ou garçonete, Bettie procura completar sua renda fazendo ensaios fotográficos, os quais, do início ao fim, ela encara com ingenuidade e sem qualquer malícia. Mas, não a diretora Mary Harron. Ela deixa bem clara a escala gradual que as fotos de Bettie vão galgando em direção à pornografia que a fará notória –do inicial e banal ensaio à beira de uma praia, até os ensaios pagos na agência de revistas gerenciada pelo casal Klaw (Lili Taylor e Chris Bauer) que a fotografam usando roupas de couro e botas de salto alto ao estilo ‘bondage’ até as fotos mais picantes –enfatizando o teor cada vez mais subversivo na trajetória da personagem e, ao mesmo tempo, proporcionando ao público (sobretudo, o masculino) as cenas de nudez total da esplêndida Gretchen Mol que ele tanto quer ver!
O filme –no qual até então predominava uma fotografia em preto & branco –adquire cores quando (a exemplo de “Touro Indomável”, de Martin Scorsese) mostra as cenas filmadas por câmeras Super 8, ou os ensaios fotográficos de Bettie nas revistas.
Também o filme fica colorido toda vez que Bettie viaja para Miami, onde conhece a fotógrafa Bunny Yeager (Sarah Paulson) que com ela faz alguns de seus mais notáveis ensaios, inclusive um para a ainda emergente revista Playboy.
Em algum momento, a fotogenia natural e cintilante de Bettie a faz destacar-se de todas as demais modelos e a torna famosa até para seu próprio prejuízo: Ela é reconhecida nos ensaios e nas audições para teatro, nos restaurantes e nos lugares públicos.
Até que, por fim, é intimada a depor num comitê governamental (interessante que Harron tenha escalado como um dos políticos do comitê, o ator David Strathairn, que estrelou o filme de mesmo tema, “Boa Noite e Boa Sorte”, num papel de posições opostas), onde Bettie sequer tem a chance de dar sua própria versão dos fatos depois de ser deixada em espera por 12 horas (!).
A redenção, para Bettie –o que Mary Harron torna até bastante natural –se encontra na fé.
Produzido pela HBO Films, e criticado por alguns por seu caráter seletivo dos percalços mostrados na trajetória real de Bettie Page, o filme de Mary Harron é irônico por, ao contrário das demais obras independentes que ela realizou, fazer um certo esforço para não se mostrar tão desconfortável ao expectador, função que, a despeito de alguma infidelidade factual, ela cumpre com mérito, sobretudo, graças à bela e carismática presença de Gretchen Mol.

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