quinta-feira, 12 de novembro de 2020

A Praia

 


Já na transição da década de 1990 para a década de 2000, a virada do milênio, a carreira de Leonardo Dicaprio sofria a chamada ‘ressaca de “Titanic”’: Parecia improvável que qualquer coisa que ele fizesse a partir dali fosse tão igualmente retumbante, e bem-sucedida quanto o épico estrondoso e megalomaníaco de James Cameron. E, com efeito, seus projetos seguintes foram redundantes (“Eclipse de Uma Paixão”, realizado três anos antes de “Titanic”, mas lançado logo depois), pouco vistos (“Celebridades”, de Woody Allen) ou simplesmente ruins mesmo (“O Homem da Máscara de Ferro”). Parecia que Dicaprio mergulharia naquela típica armadilha onde um bom ator, tornado astro por um único grande sucesso, não conseguiria igualar o mesmo feito, afundando em realizações banais.

O que acabou resguardando a responsabilidade de ser a prova de fogo –se ele era uma promessa vazia ou um astro de talento e magnetismo real –para este “A Praia”, de Danny Boyle.

Por sua vez, a situação do diretor escocês Boyle era um pouco distinta: Ele vinha de dois projetos elogiadíssimos feitos em sua Escócia-natal que pegaram o mundo de assalto (o suspense “Cova Rasa” e o hoje muito cultuado “Trainspotting-Sem Limites”) e de uma produção de bem menos repercussão (a comédia romântica de humor negro “Por Uma Vida Menos Ordinária”); em todos os três casos, Boyle reunia uma espécie de ‘família cinematográfica’, onde repetia o mesmo roteirista (John Hodge), o mesmo produtor (Andrew Macdonald) e o mesmo ator principal (Ewan McGregor).

“A Praia” era sua estréia numa produção inteiramente hollywoodiana e, se manteve todos aqueles nomes atrás das câmeras, à frente delas, ele substituiu McGregor por Dicaprio –possivelmente para acatar uma imposição do estúdio que financiou o projeto, a Fox.

Dicaprio vive Richard, um mochileiro americano perambulando pela Tailândia, e acumulando instigantes experiências de vida. Richard, contudo, não é nenhum santo –e essas características ambíguas do personagem (como dissimulação, covardia e certa ausência de escrúpulos), além de serem essenciais aos rumos que a trama vai tomando, são recebidas e incorporadas com palpável satisfação pelo astro Dicaprio, ávido por enfim interpretar um protagonista que foge às definições de bom moço.

Pernoitando num albergue caindo aos pedaços, Richard conhece seus vizinhos de quarto: Do lado direito, o casal de franceses Françoise (a gatinha Virginie Ledoyen, de “Adeus, Minha Rainha”) e Etienne (Guillaume Canet), mochileiros como ele; do lado esquerdo, o desajustado, psicótico e atormentado Daffy (Robert Carlyle).

É Daffy quem, pouco antes de suicidar-se (!), deixa com Richard um mapa que, segundo ele, conduz a uma verdadeira lenda urbana: Uma praia paradisíaca com plantações abundantes de cannabis, de onde os afortunados turistas que encontram sua trilha não têm mais vontade de sair. Convidando Françoise e Etienne para ir com ele –e já cheio de segundas intenções para cima da moça –Richard segue pelo caminho mostrado no mapa; não sem antes passar uma cópia dele para uns camaradas maconheiros com quem confraternizou na véspera.

Após uma árdua travessia no mar, e uma alucinada perseguição na própria ilha, os três encontram a tão alardeada praia, e descobrem que lá vive uma comunidade alternativa liderada pela aparentemente sábia Sal (Tilda Swinton) cujos integrantes pouco interesse têm em visitar o mundo exterior. Richard, Françoise e Etienne são recebidos por eles e, durante algum tempo, sentem-se vivendo num paraíso.

Isso até os transtornos (alguns dos quais plantados pelo próprio Richard) virem bater-lhes à porta: Ele realiza seus desejos e separa Françoise de Etienne passando a namorar a francesinha; e ainda consegue escapar de um ataque de tubarão, embora dias depois, um colega da comunidade não tenha a mesma sorte, e o sofrimento dele (sem remédios por perto para proporcionar sua cura e aliviar sua dor) desafia a manutenção de todo o clima feliz do lugar. Entretanto, o pior mesmo é quando os tais maconheiros mencionados acima resolvem aparecer no lugar –no qual rege a lei irrevogável de que ninguém deve revelar seu segredo.

Assim, as travessuras e presepadas de Richard acabam colocando toda a comunidade na mira dos traficantes responsáveis pela vasta plantação de maconha do lugar; com quem até então mantinham uma certa trégua.

Baseado num romance de Alex Garland –que, a partir deste filme, passou a ser um roteirista regular de muitas ótimas obras de Boyle daqui para frente –“A Praia” é o tipo de filme que pode enganar expectadores desavisados numa primeira impressão: Seu visual de cartão-postal (assim como a presença de Dicaprio) podem sugerir um mero veículo comercial para um astro jovem e estabelecido, mas na verdade, Boyle faz deste um filme palpitante, equilibrando facetas de suspense, aventura e intriga num ambiente bastante inusitado, construindo uma narrativa absolutamente inspirada e inquieta (um diretor menos capaz certamente teria transformado o material em algo convencional e genérico) e proporcionando a Leonardo Dicaprio uma chance para revelar-se um ator talentoso, seguro e versátil para muito além do grande sucesso pelo qual era reconhecido.

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