terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Felicity


 Não resta dúvidas, aos diversos estudiosos do período, que a década de 1970 forçou os limites da sociedade, da cultura e dos meios de entretenimento. No cinema, por exemplo, tivemos entre outros movimentos, o despontar do exploitation e o surgimento da Nova Hollywood –vertentes que podem muito bem ser equacionadas em sua relação com a liberdade criativa e a ausência da auto-censura. O pequeno clássico erótico “Felicity” pertence a um nicho muito similar a esses dois conhecido como ozploitation (que designava as obras características oriundas da Austrália), sua gênese pode ser particularmente encontrada no imprevisto sucesso de público conquistado por obras realizadas para deliberadamente escandalizar como os cults franceses "Emmanuelle" (com Sylvia Kristel) e "A História de O" (com Corinne Cléry, de “Forever”). Neles –tal e qual neste daqui –testemunhamos, num nível de audácia então carregado de certo ineditismo, uma protagonista às voltas com sua liberdade sexual, mostrada sem pudor e sem amarras; e, com frequência, numa narrativa que, a despeito do protagonismo feminino, ia de encontro às mais controversas fantasias eróticas machistas, o que levava tais filmes a ostentar sem qualquer sutileza cenas de estupro ou de contrição forçada a surgirem como experiências excitantes para a personagem principal.

Integrado ao ebuliente, populista e permissivo movimento do peculiar cinema australiano da época, “Felicity” não escapava a nenhuma dessas características.

A adolescente Felicity (vivida por Glory Annen que, na época tinha 26 anos, dez a mais que sua personagem) estuda em um internato para meninas ricas sob a constante vigilância de freiras católicas. A jovem representa por lá a própria encarnação dos pecados e das tentações: Exibe-se despudoradamente toda sem roupas ao jardineiro do lugar e aos jovens moradores das redondezas, além de ser flagrada pelas câmeras indiscretas numa sucessão de cenas de banho (e, portanto, de nudez) seja no chuveiro, seja nos riachos da região. Com os hormônios a flor da pele, Felicity se lança num insaciável interlúdio lésbico com uma de suas colegas, Jenny (Jody Hanson), até que uma carta enviada por seu pai a despacha para Hong Kong, onde deverá passar suas férias como hóspede na moradia de um casal de amigos, Stephen (Gordon Charles) e Christine (Marilyn Rodgers, de “Patrick”) que, como a maior parte dos personagens oriundos desse estilo de filme, vivem a fazer sexo por todos os cantos da casa (!). Por sinal, são as cenas rodadas em Hong Kong as responsáveis pela maior e mais significativa contribuição histórica, digamos assim, fornecida por “Felicity” nos dias de hoje: Filmadas num estilo todo documental (o que sugere a possibilidade de serem material obtido por encomenda sem a intervenção da equipe principal, algo comum em produções de cinema) as cenas flagram toda a pobreza, o descaso social e a circunstância de necessidade que assolava as classes baixas, moradores das embarcações pesqueiras, da Hong Kong naqueles anos 1970.

A saga da jovem protagonista em busca de sexo prossegue quando ela encontra a prostituta chinesa Mei Ling (Joni Flynn, de “007 Contra Octopussy”), logo após ser deflorada por um amigo de Stephen e Christine (!), e junto dela tem conhecimento do êxtase independente e libertador proporcionado pelo sexo sem compromisso.

Consta que durante a pré-produção de “Felicity” (meados de 1978), um dos diretores cotados para o projeto foi George Miller, que optou por aventurar-se numa produção sobre o pós-apocalypse intitulada “Mad Max” (e assim inscrever seu nome na história do cinema!). Em lugar dele, foi então contratado John D. Lamond, abertamente fascinado pela realização de “Emmanuelle”, de Just Jaeckin, e do semi-clássico “The World of Suzie Wong”, de Richard Quine (este, também ambientado em Hong Kong), que, ao reescrever o roteiro e assumir a direção envolveu todo o filme no clima etéreo do trabalho de Jaeckin –com o auxílio de uma direção de fotografia enevoada, suscitando uma atmosfera de sonho.

Desnecessário dizer que “Felicity” é recheado de cenas de nudez e sexo, a exemplo de toda uma profusão de trabalhos eróticos que se multiplicaram ao longo da posterior década de 1980. Trata-se de uma obra que pertence à época em que foi realizada –hoje jamais seria feito algo nesses moldes, seja em termos artísticos ou em termos mercadológicos. É preciso olhar com certa curiosidade –e, porque não, um certo fetiche culposo –para um filme que relativiza, por exemplo, o ato do estupro como uma provável fonte indireta de prazer para a mulher e tem a mais absoluta desinibição para fazer disso um de seus apelos de público.

Nenhum comentário:

Postar um comentário