Antes do bem-sucedido “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, não havia tanto pendor comercial no estilo do diretor Jean-Pierre Jeunet; ele mais lembrava (ao lado de seu colaborador, Marc Caro) uma espécie de Terry Gillian francês: Um esteta ácido, de visual tremendamente rebuscado e arrojado, atento, na construção de seus personagens, às minúcias inesperadas do ser humano, interessado em tramas que não se encaixavam harmoniosamente em nenhum gênero específico (aqui, a fantasia suplanta até a ficção científica conferindo à tudo um clima de pesadelo) e não se destinava à nenhum público de faixa etária pré-determinada; em suma, um realizador de cult-movies. Dentre suas obras, o duo “Delicatessen” e “O Ladrão de Sonhos” permeou toda a década de 1990 como uma realização desigual lendária, fruto de um autor original e singular. Hoje, sobretudo, “O Ladrão de Sonhos” é uma produção rara: Não se acha com facilidade em streaming nenhum, não passa com frequência em absolutamente nenhum canal aberto ou fechado, e já houve quem murmurasse, na internet, que ele sequer existiu.
Na trama inusitadamente intrincada que as
imagens acachapantes vão nos descortinando, conhecemos Krank (o exótico ator Daniel
Emilfork), o ‘ladrão de sonhos’ do título, e sua bizarra família: O irmão Irvin
(voz do grande Jean-Louis Trintignant) reduzido apenas ao cérebro (!?) e às
crises homéricas de enxaqueca (!!), a irmã anã e manipuladora Martha (Mireille
Mossé, de “Swimming Pool-À Beira da Piscina”) e o ‘sobrinho’, multiplicado em
uma dúzia de clones (todos eles vividos pelo ator Dominique Pinon, presente em
todas as obras de Jeunet) que servem a todos como empregados. Toda essa trupe
estranha e disfuncional habitada um reduto, a lembrar uma plataforma, em pleno
mar. De lá, Krank envia outros asseclas, integrantes de uma sociedade secreta
de ciclopes (e personagens tão intrigantes quanto todos os outros), que
sequestram na calada da noite crianças, levando-as aos punhados para o esconderijo
de Krank.
Acontece que Krank é incapaz de sonhar, e essa
deficiência o faz envelhecer precocemente –essa velhice prematura é enfatizada
pelo rosto do ator Emilfork, um dos mais esquisitos já mostrados nas telas de
cinema dos anos 1990 –a fim de deter essa mal-fadada sina, ele vale-se da
parafernália tecnológica e steampunk
que inventa em sua fortaleza e, por meio de uma máquina, extrai o sonho das
crianças que vai mantendo como prisioneiros. O sonho, ou melhor, a capacidade
de sonhar, mesmo que pesadelos soturnos (como atesta a primeira cena, um
pavoroso vislumbre do lado assustador do Natal), é o que permite se manter
jovem, reza a cartilha deste conto perverso e lúgubre perpetrado por
Jean-Pierre Jeunet.
Entretanto, não é apenas isso: Há toda uma
mecânica em torno desse acordo feito pelo recluso Krank e seus sinistros
familiares. As crianças de rua que sistematicamente desaparecem em Paris (um
ambiente, ele próprio, de sonho, retratado como se não houvessem maiores
distinções entre o dia e a noite), são levadas pelos ciclopes, mas
arregimentadas e, depois, negociadas, por duas maquiavélicas irmãs siamesas
(Geneviéve Brunet e Odile Mallet), controladoras de um orfanato, que usam as
crianças como mercadoria e ocasionalmente valem-se dos serviços de Marcello
(Jean-Claude Dreyfus, de “Todas As Manhãs do Mundo”), um ex-adestrador de
pulgas (!), cujas criaturas ainda lhe servem.
Quando o garotinho Denree (o pequeno Joseph
Lucien) é levado pelos ciclopes, seu único amigo, o grandalhão ex-homem forte do
circo e ex-caçador de baleias One (Ron Perlman) resolve seguir seu encalço ou
morrer tentando. Ele encontra um grupo de crianças de rua e conquista a ajuda
e, digamos, a afetividade da menina Miette (a fascinante Judith Vittet) para
tentar descobrir, à duras penas, o destino estranho e ingrato dado à Denree e
tantas outras crianças.
Um assombro visual que, por sua pouca
predisposição comercial, passou injustamente batido por público e crítica
naqueles anos 1990 de então, “O Ladrão de Sonhos” guarda em si um desigual
anacronismo: É vanguardista e até hoje arrojado em suas poderosas imagens (a
fotografia é de Darius Khondji, que depois moldou as sequências de “Seven-Os Sete Crimes Capitais”; os efeitos visuais, impecáveis, são à cargo de Pitof,
que anos depois dirigiu “Vidocq-O Mito”; e os magníficos figurinos são
assinados pela lenda Jean Paul Gaultier), e curiosamente, traz elementos em sua
trama e em seus desdobramentos que o fazem inadequado até mesmo ao seu próprio
período –afirmar que sua ambientação surreal é demasiada sombria para crianças
seria redundância; “O Ladrão de Sonhos” é pontuado de fatalismo, pessimismo e
subversão em níveis que podem atingir até mesmo a sensibilidade de alguns
expectadores adultos, sem falar na relação construída pelo roteiro entre One e
Miette que nitidamente flerta com a pedofilia (!).
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