sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Todas As Manhãs do Mundo

Houveram ocasiões maravilhosas em meio ao florescer do homevideo nos anos 1980 e 90: Sem tanto da avidez mercadológica que contaminou o segmento nas décadas seguintes, nivelando os lançamentos aos blockbusters mais rentáveis, muitas foram as produções de arte que apareceram entre lançamentos comerciais badalados.
O francês “Todas As Manhãs do Mundo” foi um deles.
Realizado por Alain Corneau, do cult “Noturno Indiano”, o filme debruçava-se sobre as idas e vindas da relação mestre/aluno estabelecida entre o recluso violista Monsieur de Sainte-Colombe (o magnífico Jean-Pierre Marielle, de “O Código Da Vinci”) e o ambicioso Marin Marais na segunda metade do Século XVII.
Vivido por Gerard Depardieu, Marais surge na cena inicial (um denso e extenso plano de seis minutos em close) assolado de agonia. Alunos e admiradores que aparentemente o cercam (pois deles só ouvimos as vozes) silenciam quando ele anuncia uma espécie de confissão. Assim, narrada em off por Depardieu (recurso que o filme emprega em demasia), tem início a história cujo personagem central vem a ser o austero, misterioso e perfeccionista Sainte-Colombe.
Figura histórica sobre a qual pouco se sabe, Sainte-Colombe é mostrado, no filme de Corneau, como um homem torturado, antes de tudo, pela perda do amor: Sua esposa faleceu no instante em que ele tocava para um nobre.
Mestre da viola de gamba, Sainte-Colombe perde por completo, a partir daí, um interesse maior em questões mundanas, o sucesso e o reconhecimento, até mesmo vindos das duas filhas, Madeleine e Toinette, não lhe importam mais, e ele se refugia no cenário espartano de uma árida cabana de madeira para lá aprimorar sua musicalidade até atingir a perfeição.
Com o tempo, Madeleine (Anne Brochet) e Toinette (Carole Richert) aprenderam de sua arte, passando a acompanhar o pai em seus poucos e raros concertos.
O talento e a propriedade musical de Sainte-Colombe lhe garantiram um aura lendária que levou até mesmo o rei Luís XIV a requisitar em vão suas apresentações.
Para Sainte-Colombe, contudo, a ovação era um ganho banal diante do objetivo primordial que ele almejava na música, e o filme o registra em tal propósito de transcendência que, logo, ele está a tocar na presença da esposa morta (Caroline Sihol), um contato com os mortos onde ele, e mais ninguém, enxerga a razão da música enquanto verdadeira arte.
É quando surge em seu caminho o jovem Marin Marais (vivido por Guillaume Depardieu, filho de Gerard que, aqui, divide o mesmo personagem com o pai).
Disposto a atingir a grandeza como violista, Marais roga pelos ensinamentos de Sainte-Colombe que, num primeiro momento, o recusa. Entretanto, Sainte-Colombe identifica, mais do que talento, uma compreensão do trágico em Marais que pode levá-lo ao entendimento da música e de seu objetivo, e assim o aceita como aluno.
Esse período se revela turbulento; porque as personalidades conflitantes de Marais e Sainte-Colombe enxergam a arte de diferentes formas: Para Marais, ela é um meio para sua almejada consagração, quem sabe, junto ao rei; para Sainte-Colombe, a obsessão pelo aplauso experimentada por seu pupilo denigre a autenticidade da música em seu estado mais puro.
O rompimento é inevitável, mas Marais permanece por perto, recebendo lições de Madeleine, que por ele se apaixona. As visitas de Marais –sempre desapercebidas por Sainte-Colombe –se tornam cada vez mais esporádicas, à medida que ele, com o conhecimento aprendido com pai e filha, vai ascendendo na côrte do rei até converter-se, por fim, em Diretor da Câmara Musical. Até lá, Madeleine dele engravidou e deu à luz um bebê morto –isso tudo e mais a angústia pela ausência de Marais leva ela a adoecer e definhar.
Nos seus últimos anos de vida, e já completamente sozinho –pois, Toinette casou-se e foi embora e Madeleine terminou se suicidando –Sainte-Colombe mergulha numa solidão tão intensa quanto sua quietude, enquanto Marais, acometido por uma necessidade de apreciar a mais sublime e imaculada forma de música, passa a visitar o antigo mestre em segredo, na tentativa de ouvir uma de suas composições através das paredes da velha cabana.
No trecho final, Marais e Sainte-Colombe enfim se prestam a um reencontro, quando o mestre finalmente enxerga uma necessidade de transmitir seu saber para o aluno –e o filme não nega assim uma oportunidade para o expectador saborear uma cena onde um Marais já amadurecido (e, portanto, interpretado por Gerard Depardieu) se vê frente a frente com o Sainte-Colombe de Jean-Pierre Marielle. Um esplêndido duelo de interpretações, emocionante e emocionado, de dois grandes atores.
Ao fim, o diretor Alain Corneau, perspicaz, retorna àquela cena do início –Marais cercado de seus próprios discípulos –para evidenciar que o aluno, deveras, assimilou a lição quando, numa evocativa visão fantasmagórica do próprio mestre, ele encerra este grande filme impregnado de música com ressonantes sentimentos de reconhecimento, gratidão e respeito.

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