Houveram ocasiões maravilhosas em meio ao
florescer do homevideo nos anos 1980 e 90: Sem tanto da avidez mercadológica
que contaminou o segmento nas décadas seguintes, nivelando os lançamentos aos
blockbusters mais rentáveis, muitas foram as produções de arte que apareceram
entre lançamentos comerciais badalados.
O francês “Todas As Manhãs do Mundo” foi um
deles.
Realizado por Alain Corneau, do cult “Noturno
Indiano”, o filme debruçava-se sobre as idas e vindas da relação mestre/aluno
estabelecida entre o recluso violista Monsieur de Sainte-Colombe (o magnífico
Jean-Pierre Marielle, de “O Código Da Vinci”) e o ambicioso Marin Marais na
segunda metade do Século XVII.
Vivido por Gerard Depardieu, Marais surge na
cena inicial (um denso e extenso plano de seis minutos em close) assolado de
agonia. Alunos e admiradores que aparentemente o cercam (pois deles só ouvimos
as vozes) silenciam quando ele anuncia uma espécie de confissão. Assim, narrada
em off por Depardieu (recurso que o filme emprega em demasia), tem início a
história cujo personagem central vem a ser o austero, misterioso e
perfeccionista Sainte-Colombe.
Figura histórica sobre a qual pouco se sabe,
Sainte-Colombe é mostrado, no filme de Corneau, como um homem torturado, antes
de tudo, pela perda do amor: Sua esposa faleceu no instante em que ele tocava
para um nobre.
Mestre da viola de gamba, Sainte-Colombe perde
por completo, a partir daí, um interesse maior em questões mundanas, o sucesso
e o reconhecimento, até mesmo vindos das duas filhas, Madeleine e Toinette, não
lhe importam mais, e ele se refugia no cenário espartano de uma árida cabana de
madeira para lá aprimorar sua musicalidade até atingir a perfeição.
Com o tempo, Madeleine (Anne Brochet) e
Toinette (Carole Richert) aprenderam de sua arte, passando a acompanhar o pai
em seus poucos e raros concertos.
O talento e a propriedade musical de
Sainte-Colombe lhe garantiram um aura lendária que levou até mesmo o rei Luís
XIV a requisitar em vão suas apresentações.
Para Sainte-Colombe, contudo, a ovação era um
ganho banal diante do objetivo primordial que ele almejava na música, e o filme
o registra em tal propósito de transcendência que, logo, ele está a tocar na
presença da esposa morta (Caroline Sihol), um contato com os mortos onde ele, e
mais ninguém, enxerga a razão da música enquanto verdadeira arte.
É quando surge em seu caminho o jovem Marin
Marais (vivido por Guillaume Depardieu, filho de Gerard que, aqui, divide o
mesmo personagem com o pai).
Disposto a atingir a grandeza como violista,
Marais roga pelos ensinamentos de Sainte-Colombe que, num primeiro momento, o
recusa. Entretanto, Sainte-Colombe identifica, mais do que talento, uma
compreensão do trágico em Marais que pode levá-lo ao entendimento da música e
de seu objetivo, e assim o aceita como aluno.
Esse período se revela turbulento; porque as
personalidades conflitantes de Marais e Sainte-Colombe enxergam a arte de
diferentes formas: Para Marais, ela é um meio para sua almejada consagração,
quem sabe, junto ao rei; para Sainte-Colombe, a obsessão pelo aplauso
experimentada por seu pupilo denigre a autenticidade da música em seu estado
mais puro.
O rompimento é inevitável, mas Marais permanece
por perto, recebendo lições de Madeleine, que por ele se apaixona. As visitas
de Marais –sempre desapercebidas por Sainte-Colombe –se tornam cada vez mais
esporádicas, à medida que ele, com o conhecimento aprendido com pai e filha,
vai ascendendo na côrte do rei até converter-se, por fim, em Diretor da Câmara
Musical. Até lá, Madeleine dele engravidou e deu à luz um bebê morto –isso tudo
e mais a angústia pela ausência de Marais leva ela a adoecer e definhar.
Nos seus últimos anos de vida, e já
completamente sozinho –pois, Toinette casou-se e foi embora e Madeleine
terminou se suicidando –Sainte-Colombe mergulha numa solidão tão intensa quanto
sua quietude, enquanto Marais, acometido por uma necessidade de apreciar a mais
sublime e imaculada forma de música, passa a visitar o antigo mestre em
segredo, na tentativa de ouvir uma de suas composições através das paredes da
velha cabana.
No trecho final, Marais e Sainte-Colombe enfim
se prestam a um reencontro, quando o mestre finalmente enxerga uma necessidade
de transmitir seu saber para o aluno –e o filme não nega assim uma oportunidade
para o expectador saborear uma cena onde um Marais já amadurecido (e, portanto,
interpretado por Gerard Depardieu) se vê frente a frente com o Sainte-Colombe
de Jean-Pierre Marielle. Um esplêndido duelo de interpretações, emocionante e
emocionado, de dois grandes atores.
Ao fim, o diretor Alain
Corneau, perspicaz, retorna àquela cena do início –Marais cercado de seus
próprios discípulos –para evidenciar que o aluno, deveras, assimilou a lição
quando, numa evocativa visão fantasmagórica do próprio mestre, ele encerra este
grande filme impregnado de música com ressonantes sentimentos de
reconhecimento, gratidão e respeito.
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