No início dos anos 2000, vários autores
cinematográficos abraçaram com satisfação o formato da câmera digital em prol
da execução de um cinema mais imediato e livre que atendesse as demandas de
seus processos criativos, como David Lynch (“Império dos Sonhos”), Michael Mann
(“Colateral”) e Danny Boyle (“Extermínio”), entre outros.
À eles, somou-se o japonês Takashi Miike com
este “Cena Mafiosa”.
Miike nunca foi um diretor adepto de concessões
ou amenidades e, neste registro cru e urgente obtido aqui, ele começa o filme
fazendo o que mais quer: Desconcertar.
Começamos assim com gangsters yakuza acuando
física e psicologicamente uma mulher, cobrando dela as dívidas contraídas pelo
marido que se encontra ausente. A agressão se torna ainda pior quando o líder
do grupo decide estuprá-la como gesto simbólico –e, numa manobra bem
característica de Takashi Miike, a câmera se move mostrando o marido presente
em casa, escondido dentro do armário e sem dar um pio, tentando esconder do
filho pequeno os indícios terríveis do que ocorre logo ali ao lado com sua mãe.
Na sequência, o marido covarde (por quem a cena
trata de nos inspirar um certo ultraje) é espancado até a morte por jovens
cobradores da yakuza, plantando uma semente de indignação no filho mais velho,
o qual não ficamos sabendo onde estava na cena anterior.
Mais do que oferecer informações válidas para a
história a seguir (ficando mais na área dos indícios que não se concretizam),
essa sequência exibe o estilo inconstante proporcionado ao diretor pelo manejo
da câmera digital –ele simula, de um instante para o outro, uma série de
películas distintas (sépia, 16mm, 35mm, todas com algum artificialismo) ao
sabor da aleatoriedade e das nuances dramáticas dos acontecimentos.
A trama que parece realmente começar, em meio à
captura de cenas triviais subitamente transfiguradas por rompantes violentos,
parece ser a de um assassino de aluguel que promove à tiros um extermínio a
Iwaida, um chefão yakuza e seu séquito de guarda-costas dentro de um elevador.
No exato momento, ele é surpreendido pela aparição de Rie Ishibashi, uma jovem
e bela enfermeira, a única pessoa aparentemente capaz de reconhecer sua
identidade: Takeshi Relâmpago, por sinal, um assassino lendário entre os
mafiosos japoneses.
Segue-se o que é esperado dos yakuzas: A ávida
procura pelo responsável para dele se vingar. O que ocorre é que dois desses
investigadores (Takashi, um do lado da polícia, e Hideshi, outro a mando da
própria máfia) são, também eles, irmãos de Takeshi (!).
Enquanto isso, o próprio Takeshi (um personagem
misterioso e taciturno, sobre o qual muito se fala, mas que pouco aparece de
fato na narrativa) não sossega até reencontrar Rie, a enfermeira que viu
naquela ocasião, num improvável caso de amor à primeira vista. Todavia, envolver-se
com Takeshi Relâmpago, para a moça, significa sujeitar-se às represálias da
yakuza e tal detalhe, num filme dirigido por Takashi Miike, representa ser o
foco das mais inapeláveis crueldades; que o diga Mariko, a esposa de Takashi,
sequestrada por um dos gangsters para ser torturada e estuprada a fim de
convencê-lo a entregar o irmão.
Repartido em dois filmes sem maiores razões
para isso, este ebuliente épico pessoal sobre a yakuza pode confundir e até
irritar expectadores que não tenham previamente essa informação: Este primeiro
filme, na objetividade de seus setenta e nove minutos de duração, deixa
diversas pontas soltas às quais Takashi Miike não faz a menor questão de
fornecer algum precedente –e esses são lapsos que ele parece manter deliberadamente
até em outros trabalhos seus.
No entanto, o que conta,
como sempre, é seu impecável senso de urgência no registro peculiar, algo
fetichista, das pulsões mais obscuras e hediondas de homens que têm o poder de
infligir impunemente dor e sofrimentos incondicionais –na voltagem quase
extasiante de sua narrativa, Takashi Miike reflete o sadismo estampado no rosto
de seus mafiosos cruéis ao submeter atores e atrizes às encenações plenas de
criatividade e perversão de seu filme.
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