segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Cena Mafiosa

No início dos anos 2000, vários autores cinematográficos abraçaram com satisfação o formato da câmera digital em prol da execução de um cinema mais imediato e livre que atendesse as demandas de seus processos criativos, como David Lynch (“Império dos Sonhos”), Michael Mann (“Colateral”) e Danny Boyle (“Extermínio”), entre outros.
À eles, somou-se o japonês Takashi Miike com este “Cena Mafiosa”.
Miike nunca foi um diretor adepto de concessões ou amenidades e, neste registro cru e urgente obtido aqui, ele começa o filme fazendo o que mais quer: Desconcertar.
Começamos assim com gangsters yakuza acuando física e psicologicamente uma mulher, cobrando dela as dívidas contraídas pelo marido que se encontra ausente. A agressão se torna ainda pior quando o líder do grupo decide estuprá-la como gesto simbólico –e, numa manobra bem característica de Takashi Miike, a câmera se move mostrando o marido presente em casa, escondido dentro do armário e sem dar um pio, tentando esconder do filho pequeno os indícios terríveis do que ocorre logo ali ao lado com sua mãe.
Na sequência, o marido covarde (por quem a cena trata de nos inspirar um certo ultraje) é espancado até a morte por jovens cobradores da yakuza, plantando uma semente de indignação no filho mais velho, o qual não ficamos sabendo onde estava na cena anterior.
Mais do que oferecer informações válidas para a história a seguir (ficando mais na área dos indícios que não se concretizam), essa sequência exibe o estilo inconstante proporcionado ao diretor pelo manejo da câmera digital –ele simula, de um instante para o outro, uma série de películas distintas (sépia, 16mm, 35mm, todas com algum artificialismo) ao sabor da aleatoriedade e das nuances dramáticas dos acontecimentos.
A trama que parece realmente começar, em meio à captura de cenas triviais subitamente transfiguradas por rompantes violentos, parece ser a de um assassino de aluguel que promove à tiros um extermínio a Iwaida, um chefão yakuza e seu séquito de guarda-costas dentro de um elevador. No exato momento, ele é surpreendido pela aparição de Rie Ishibashi, uma jovem e bela enfermeira, a única pessoa aparentemente capaz de reconhecer sua identidade: Takeshi Relâmpago, por sinal, um assassino lendário entre os mafiosos japoneses.
Segue-se o que é esperado dos yakuzas: A ávida procura pelo responsável para dele se vingar. O que ocorre é que dois desses investigadores (Takashi, um do lado da polícia, e Hideshi, outro a mando da própria máfia) são, também eles, irmãos de Takeshi (!).
Enquanto isso, o próprio Takeshi (um personagem misterioso e taciturno, sobre o qual muito se fala, mas que pouco aparece de fato na narrativa) não sossega até reencontrar Rie, a enfermeira que viu naquela ocasião, num improvável caso de amor à primeira vista. Todavia, envolver-se com Takeshi Relâmpago, para a moça, significa sujeitar-se às represálias da yakuza e tal detalhe, num filme dirigido por Takashi Miike, representa ser o foco das mais inapeláveis crueldades; que o diga Mariko, a esposa de Takashi, sequestrada por um dos gangsters para ser torturada e estuprada a fim de convencê-lo a entregar o irmão.
Repartido em dois filmes sem maiores razões para isso, este ebuliente épico pessoal sobre a yakuza pode confundir e até irritar expectadores que não tenham previamente essa informação: Este primeiro filme, na objetividade de seus setenta e nove minutos de duração, deixa diversas pontas soltas às quais Takashi Miike não faz a menor questão de fornecer algum precedente –e esses são lapsos que ele parece manter deliberadamente até em outros trabalhos seus.
No entanto, o que conta, como sempre, é seu impecável senso de urgência no registro peculiar, algo fetichista, das pulsões mais obscuras e hediondas de homens que têm o poder de infligir impunemente dor e sofrimentos incondicionais –na voltagem quase extasiante de sua narrativa, Takashi Miike reflete o sadismo estampado no rosto de seus mafiosos cruéis ao submeter atores e atrizes às encenações plenas de criatividade e perversão de seu filme.

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