Quando olhamos “Império dos Sonhos” à luz do
fato de ser o último filme para cinema de David Lynch –e que assim se manteve
nos últimos anos –podemos assim enxergá-lo então como um compêndio e um
inventário de toda sua carreira. E, numa primeira análise, não existem muitas
maneiras lúcidas de se definir este trabalho de Lynch, que consegue ser ainda mais
labiríntico, surreal, desafiador e indecifrável do que os extraordinários
“Cidade dos Sonhos” e “A Estrada Perdida”.
Elaborar uma sinopse, então, significa caminhar
num terreno pantanoso.
Após uma sucessão de cenas que beiram o
incompreensível (em meio às quais aparecem até mesmo os personagens dos curtas,
“Rabbits”, de Lynch, que surgirão aqui e ali ao longo deste filme), cuja única
referência possível seria o prólogo igualmente desafiador de “Persona”, de
Ingmar Bergman –e que, também ele, representava um inventário da obra pregressa
do autor –somos apresentados à personagem vivida por Laura Dern. Uma atriz já
estabelecida em Hollywood, mas cuja idade começa a tornar dificultosas as
descobertas de bons papéis. Ela recebe a visita de uma mulher estranha (Grace
Zabriskie) que lhe narra uma pequena fábula e lhe faz uma espécie de presságio.
A fábula: “Um dia o menino quis ver o mundo e, ao sair pela porta, deixou para
trás uma sombra. O mal então nasceu, e passou a perseguir o menino para sempre.”
O presságio: Ela obterá o papel que tanto
deseja.
Tal papel, a atriz descobrirá mais tarde, é o
de protagonista num filme onde seu parceiro de cena (Justin Theroux, de “Cidade
dos Sonhos”) é famoso por se envolver com as atrizes com quem trabalha –o quê,
eventualmente, vem a ocorrer. O diretor do filme (Jeremy Irons) tem então uma
conversa com os dois para dar-lhes uma revelação: Tal filme é, na realidade, a refilmagem
de um projeto polonês que jamais foi realmente concluído, pois os comentários
diziam tratar-se de uma produção amaldiçoada.
Estaria também o filme que eles próprios estão
fazendo amaldiçoado?
Sequer há tempo para se preocupar com essa
alternativa: A partir daí, Lynch enreda o expectador e os personagens num
pesadelo de duplas identidades e metalinguagem, onde ele visita as mais
fragmentadas narrativas usando como fio condutor, quando muito, a perplexidade
da personagem de Laura Dern que, aos poucos, vamos percebendo que se trata (ou
deve se tratar...) de mais de uma única personagem interpretada pela mesma
atriz; assim como também, convulsivamente, Lynch trás a mesma personagem vivida
por atrizes diferentes (repare na jovem entristecida e inconsolável que surge
no prólogo).
Em se tratando de David Lynch, é também possível estabelecer intermináveis relações entre o conto relatado pela estranha mulher (descrito acima) e a própria premissa oculta no filme.
Contado ao longo de três
horas de duração (!) e pontuado por cenas aterrorizantes capazes de fazer
qualquer um pular da cadeira (embora não seja um filme de terror no sentido
convencional do termo), este trabalho segue inconclusivo, dúbio, desprovido de
respostas e esclarecimentos. É um legado bem de acordo com a personalidade de
seu realizador e da lembrança que ele pretendia deixar ao mundo: A de uma arte
plena de fascínio e potencialmente capaz de desafiar o entendimento de gerações
de cinéfilos.
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