Martin Scorsese dedica uns bons minutos de seu
magnífico documentário, “Uma Viagem Pessoal Através do Cinema Americano”, a
avaliar o filme “Sangue de Pantera”, de Jacques Tourneur.
Não é à toa: Tourneur e seu trabalho notável,
são responsáveis pelo paradigma primordial dos bons e eficazes filmes de terror
–o de que a sugestão é infinitamente mais aterrorizante do que o fato.
Em tom de crônica, a narrativa acompanha a
imigrante sérvia Irena Dubrovna (Simone Simon, magnífica em sua ameaça e
vulnerabilidade) que conhece o americano Oliver Reed (Ken Smith) em um
zoológico e dele logo se enamora. O relacionamento leva ao casamento, mas
Irena, por razões nebulosas teme em consumar a união com sexo: Ela confidencia
ao seu psiquiatra (Tom Conway) que a relação carnal pode detonar um temor que
carrega desde sua terra natal, onde as mulheres, por forças maléficas
sobrenaturais, pertenciam à uma espécie de “povo felino”, transformando-se em
panteras quando confrontadas com emoções extremas.
Entretanto, a própria Irena não conseguirá
evitar sensações atrozes como o ciúme ou a raiva quando seu próprio casamento
com Oliver, justamente devido à sua evasão, começar a se deteriorar, dando
margem para que ele encontre o amor com Alice (Jane Rudolph), sua colega de
trabalho.
Durante pelo menos uns oitenta por cento de sua
narrativa, todas as facetas mais aflitivas e macabras dessa premissa são
meramente sugeridas pela direção elegante de Tourneur, que conduz a trama de
forma a passear por outros gêneros salientando os aspectos lúgubres por meio de
um jogo magistral de luzes –toda a trajetória de Irena rumo ao âmago sombrio de
sua verdadeira natureza é, do início ao fim, envolto em sombras. E elas estão
lá, moldando desde o começo as mais diversas silhuetas felinas, sejam em meio à
sombras projetadas nas paredes (e às vezes até na própria personagem principal),
sejam em ornamentos ou penteados das figurantes (tudo no filme prevê aquilo no
qual a protagonista irá se tornar).
A razão para essa genialidade estilística se
encontra, em grande medida, na necessidade e não na intenção: Contratado pela
RKO depois de um produtivo período como assistente de David O’ Zelsnick, o
jovem produtor Val Newton tinha por incumbência realizar uma série de filmes de
terror de baixo orçamento (“Sangue de Pantera”, para se ter uma idéia aproveita
cenários usados por Orson Welles em “Soberba”, como a suntuosa escadaria
circular) para competir com os bem-sucedidos “monstros da Universal” –leia-se o
“Drácula”, de Bela Lugosi, o “Frankenstein”, de Boris Karlof, e o “Lobisomen”,
de Lon Chaney. A saída foi chamar o promissor jovem diretor Jacques Tourneur e
elaborar um filme que se dedicasse a ilustrar em sua maior parte, o tormento
íntimo dos personagens, contraponto as expectativas de tensão com cenas
calibradas à perfeição em seus enquadramentos de câmera e montagem para que
tudo o que não podia ser visto fosse assim preenchido com a imaginação do
público: E dessa iniciativa surgiram cenas primorosas como a perseguição no
parque (um exercício de suspense que não tardou a virar referência do gênero)
ou a cena da piscina (uma das mais memoráveis da produção).
Como ocorre a muitos clássicos antigos, donos
de premissas brilhantes, pertinentes e atuais. “Sangue de Pantera” ganhou, em
1982, uma refilmagem.
Talvez, devido à sutileza que impera no filme e
no tratamento dado às tintas sexuais, convertendo-as em subtexto, o novo filme,
“A Marca da Pantera”, sintomaticamente escancarava a luxúria e a sexualidade da
história tornando-se assim praticamente uma fantasia erótica de terror.
Conseqüência disso é a presença de Nastassja
Kinski (um dos grandes símbolos sexuais do fim dos anos 1970 e começo dos anos
1980) como Irena (o sobrenome agora foi mudado para Gallier, e sua etnia e
procedência foi deixada nebulosa). No registro de Nastassja –que aqui está tão
absurdamente linda quanto em “Os Amores de Maria” –a personagem adquire mais
voluptuosidade e ambigüidade fazendo a protagonista Simone Simon, em
comparação, soar pudica e até mesmo inocente. A Irena de Nastassja é mais do
que apenas uma femme fatale: Ela é, na composição que o filme faz dela, um
monstro em gestação.
Tal ambigüidade se estende também ao restante
do filme –o roteiro de Alan Ormsby acrescenta novos desvios, como uma trama
prólogo em que Irena descobre os segredos sobrenaturais de sua família por meio
de seu irmão Paul (Malcolm McDowell, num personagem que não existe no original),
com quem parece estabelecer, durante o primeiro terço de filme, uma tensão
sexual incestuosa (!).
São possíveis reflexos da permissividade sexual
que predominava na cultura pop do período (ainda muito longe do politicamente
correto surgir) e muito provavelmente de certa misoginia por parte dos
realizadores –em especial o diretor Paul Schrader e o produtor Charles Fries;
Na erotização e no fetiche da nudez de suas atrizes (além de Nastassja, que
fica nua durante boa parte da segunda metade do filme. a jovem Annette O’
Toole, como Alice também tem um breve momento) é que a refilmagem parece
encontrar um apelo de público e algum diferencial em relação ao clássico.
A trama segue similar em vários aspectos,
embora haja propriedade nesta refilmagem –muito mais do que nas refilmagens
pouco imaginativas de hoje em dia, réplicas pálidas dos filmes originais nos
quais se inspiram.
Em Nova Orleans, a bela estrangeira Irena
(Nastassja) encontra Paul (McDowell), seu irmão, com quem pouco teve
oportunidade de conviver. Aos poucos, enquanto revela a ela sua intenção em
possuía-la, Paul também a deixa ciente da maldição que paira sobre sua família:
Eles pertencem ao “povo felino”, que só pode relacionar-se sexualmente entre si
–se dormir com outro homem, Irena (que é virgem) irá transformar-se numa
pantera selvagem (o mesmo ocorre com Paul quando transa com alguma outra
mulher), e a única maneira de regressar à forma humana é matando.
Entretanto, Irena conhece e se apaixona por
Oliver (John Heard) que, desta vez, é funcionário do zoológico em torno do qual
a história se passa, assim como Alice (Annette), que ganha menos expressão
neste filme do que no original, embora a personagem preserve suas
características e continue sendo protagonista da antológica cena na piscina,
talvez, a única cena que aqui é recriada em minúcia.
O final, também ele diferente do desfecho do
filme de Tourneur, parece um sinal daqueles novos tempos –soa mais cínico e
moralmente displicente: Oliver transa uma última vez com Irena, atendendo seu
pedido de deixar que ela vire definitivamente uma pantera. Na cena final, onde
descobrimos que Oliver e Alice ficaram juntos, vemos que Irena é agora (com o
aval possivelmente silencioso de Oliver, inclusive em relação às mortes que ela
praticou) a pantera em exposição na jaula do zoológico.
Em tempo: A música-tema
deste filme, cantada por David Bowie, é tocada numa cena de “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino –uma homenagem, já que a personagem da atriz
alemã seria inicialmente interpretada por Nastassja Kinski.
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