sexta-feira, 16 de junho de 2017

Sangue de Pantera / A Marca da Pantera

Martin Scorsese dedica uns bons minutos de seu magnífico documentário, “Uma Viagem Pessoal Através do Cinema Americano”, a avaliar o filme “Sangue de Pantera”, de Jacques Tourneur.
Não é à toa: Tourneur e seu trabalho notável, são responsáveis pelo paradigma primordial dos bons e eficazes filmes de terror –o de que a sugestão é infinitamente mais aterrorizante do que o fato.
Em tom de crônica, a narrativa acompanha a imigrante sérvia Irena Dubrovna (Simone Simon, magnífica em sua ameaça e vulnerabilidade) que conhece o americano Oliver Reed (Ken Smith) em um zoológico e dele logo se enamora. O relacionamento leva ao casamento, mas Irena, por razões nebulosas teme em consumar a união com sexo: Ela confidencia ao seu psiquiatra (Tom Conway) que a relação carnal pode detonar um temor que carrega desde sua terra natal, onde as mulheres, por forças maléficas sobrenaturais, pertenciam à uma espécie de “povo felino”, transformando-se em panteras quando confrontadas com emoções extremas.
Entretanto, a própria Irena não conseguirá evitar sensações atrozes como o ciúme ou a raiva quando seu próprio casamento com Oliver, justamente devido à sua evasão, começar a se deteriorar, dando margem para que ele encontre o amor com Alice (Jane Rudolph), sua colega de trabalho.
Durante pelo menos uns oitenta por cento de sua narrativa, todas as facetas mais aflitivas e macabras dessa premissa são meramente sugeridas pela direção elegante de Tourneur, que conduz a trama de forma a passear por outros gêneros salientando os aspectos lúgubres por meio de um jogo magistral de luzes –toda a trajetória de Irena rumo ao âmago sombrio de sua verdadeira natureza é, do início ao fim, envolto em sombras. E elas estão lá, moldando desde o começo as mais diversas silhuetas felinas, sejam em meio à sombras projetadas nas paredes (e às vezes até na própria personagem principal), sejam em ornamentos ou penteados das figurantes (tudo no filme prevê aquilo no qual a protagonista irá se tornar).
A razão para essa genialidade estilística se encontra, em grande medida, na necessidade e não na intenção: Contratado pela RKO depois de um produtivo período como assistente de David O’ Zelsnick, o jovem produtor Val Newton tinha por incumbência realizar uma série de filmes de terror de baixo orçamento (“Sangue de Pantera”, para se ter uma idéia aproveita cenários usados por Orson Welles em “Soberba”, como a suntuosa escadaria circular) para competir com os bem-sucedidos “monstros da Universal” –leia-se o “Drácula”, de Bela Lugosi, o “Frankenstein”, de Boris Karlof, e o “Lobisomen”, de Lon Chaney. A saída foi chamar o promissor jovem diretor Jacques Tourneur e elaborar um filme que se dedicasse a ilustrar em sua maior parte, o tormento íntimo dos personagens, contraponto as expectativas de tensão com cenas calibradas à perfeição em seus enquadramentos de câmera e montagem para que tudo o que não podia ser visto fosse assim preenchido com a imaginação do público: E dessa iniciativa surgiram cenas primorosas como a perseguição no parque (um exercício de suspense que não tardou a virar referência do gênero) ou a cena da piscina (uma das mais memoráveis da produção).
Como ocorre a muitos clássicos antigos, donos de premissas brilhantes, pertinentes e atuais. “Sangue de Pantera” ganhou, em 1982, uma refilmagem.

Talvez, devido à sutileza que impera no filme e no tratamento dado às tintas sexuais, convertendo-as em subtexto, o novo filme, “A Marca da Pantera”, sintomaticamente escancarava a luxúria e a sexualidade da história tornando-se assim praticamente uma fantasia erótica de terror.
Conseqüência disso é a presença de Nastassja Kinski (um dos grandes símbolos sexuais do fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980) como Irena (o sobrenome agora foi mudado para Gallier, e sua etnia e procedência foi deixada nebulosa). No registro de Nastassja –que aqui está tão absurdamente linda quanto em “Os Amores de Maria” –a personagem adquire mais voluptuosidade e ambigüidade fazendo a protagonista Simone Simon, em comparação, soar pudica e até mesmo inocente. A Irena de Nastassja é mais do que apenas uma femme fatale: Ela é, na composição que o filme faz dela, um monstro em gestação.
Tal ambigüidade se estende também ao restante do filme –o roteiro de Alan Ormsby acrescenta novos desvios, como uma trama prólogo em que Irena descobre os segredos sobrenaturais de sua família por meio de seu irmão Paul (Malcolm McDowell, num personagem que não existe no original), com quem parece estabelecer, durante o primeiro terço de filme, uma tensão sexual incestuosa (!).
São possíveis reflexos da permissividade sexual que predominava na cultura pop do período (ainda muito longe do politicamente correto surgir) e muito provavelmente de certa misoginia por parte dos realizadores –em especial o diretor Paul Schrader e o produtor Charles Fries; Na erotização e no fetiche da nudez de suas atrizes (além de Nastassja, que fica nua durante boa parte da segunda metade do filme. a jovem Annette O’ Toole, como Alice também tem um breve momento) é que a refilmagem parece encontrar um apelo de público e algum diferencial em relação ao clássico.
A trama segue similar em vários aspectos, embora haja propriedade nesta refilmagem –muito mais do que nas refilmagens pouco imaginativas de hoje em dia, réplicas pálidas dos filmes originais nos quais se inspiram.
Em Nova Orleans, a bela estrangeira Irena (Nastassja) encontra Paul (McDowell), seu irmão, com quem pouco teve oportunidade de conviver. Aos poucos, enquanto revela a ela sua intenção em possuía-la, Paul também a deixa ciente da maldição que paira sobre sua família: Eles pertencem ao “povo felino”, que só pode relacionar-se sexualmente entre si –se dormir com outro homem, Irena (que é virgem) irá transformar-se numa pantera selvagem (o mesmo ocorre com Paul quando transa com alguma outra mulher), e a única maneira de regressar à forma humana é matando.
Entretanto, Irena conhece e se apaixona por Oliver (John Heard) que, desta vez, é funcionário do zoológico em torno do qual a história se passa, assim como Alice (Annette), que ganha menos expressão neste filme do que no original, embora a personagem preserve suas características e continue sendo protagonista da antológica cena na piscina, talvez, a única cena que aqui é recriada em minúcia.
O final, também ele diferente do desfecho do filme de Tourneur, parece um sinal daqueles novos tempos –soa mais cínico e moralmente displicente: Oliver transa uma última vez com Irena, atendendo seu pedido de deixar que ela vire definitivamente uma pantera. Na cena final, onde descobrimos que Oliver e Alice ficaram juntos, vemos que Irena é agora (com o aval possivelmente silencioso de Oliver, inclusive em relação às mortes que ela praticou) a pantera em exposição na jaula do zoológico.
Em tempo: A música-tema deste filme, cantada por David Bowie, é tocada numa cena de “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino –uma homenagem, já que a personagem da atriz alemã seria inicialmente interpretada por Nastassja Kinski.

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