As inquietações que permeiam a filmografia de
David Cornenberg surgem inusitadas em “Gêmeos-Mórbida Semelhança”. Não que o
filme seja atípico para seu diretor. Pelo contrário: ele reafirma com potência
todos os elementos que ele vinha carregando desde seus primeiros e viscerais
trabalhos já nos anos 1970, imbuídos por vezes daquela transgressão
característica dos jovens autores, e que o levaram a flertar, e muito, com o
gênero de terror e ficção científica. Em algum ponto do fim da década de 1980,
Cronenberg percebeu que podia ser, também, elegante. Surgiram assim obras
fascinantes. Ele já havia chamado a atenção com o hoje clássico “A Mosca”,
refilmagem original e desconcertante de “A Mosca da Cabeça Branca”. Com
“Gêmeos”, ele adaptou o livro de Barrie Wood e Jack Geasland, baseado por sua
vez em um trágico fato real. Um detalhe interessante nesses dois projetos é o
modo intrínseco como Cronenberg parece adotar um projeto paralelo (o remake de
outra obra e a adaptação do trabalho literário de outra pessoa) e dele fazer
algo tão seu; repleto de suas próprias particularidades e, sobretudo, suas
próprias observações acerca das angústias do ser humano.
Interpretados com latejante genialidade por
Jeremy Irons, o gêmeos Elliot e Beverly Mantle atuam como ginecologistas,
intrigados, desde muito jovens, pelas mutações internas do corpo humano em
geral, e do corpo feminino em particular. Para o mais retraído, Beverly, esse
fascínio irá se materializar na forma de Claire Nevoau, uma atriz que aparece
em sua clínica e que descobrem portar uma rara anomalia uterina. Como todas as
mulheres da vida dos gêmeos, Claire acaba dormindo com ambos sem perceber, mas
ele exerce em Beverly um efeito mais desestabilizador, dando início a uma
espécie de divisão de suas personalidades, até então profundamente dependentes
e simbióticas.
Um das grandes obras de Cronenberg, “Gêmeos” é,
em inúmeros aspectos, um trabalho brilhante de cinema. A começar pela atuação
sem precedentes de Jeremy Irons, que incorpora dois indivíduos iguais e
indistintos, mas dá a cada um, uma particularidade, um elemento de sutil
percepção cênica que evidencia um do outro, sem jamais cair em armadilhas
fáceis para esse tipo de trabalho. Há quem diga que o Oscar de Melhor Ator,
conquistado por ele no ano seguinte por “O Reverso da Fortuna” foi uma forma da
Academia premiá-lo por este trabalho, bem mais radical e controverso para os
padrões comportados do Oscar (e ao assistir o desempenho assombroso de Irons,
dá muito bem para acreditar nisso). Se existe no filme outro gênio, ele é sem
dúvida seu diretor. Ao usar de seus planos milimetricamente escolhidos e
pensados, Cronenberg cria desde o início, um mundo idealizado no qual Elliot e
Beverly dividem sua existência, sem nunca descuidar da elaboração nas cenas
(plenas de criatividade) em que Irons contracena com si mesmo.
São estranhamente assombrosos, por exemplo, os
momentos em que vemos enfermeiros e cirurgiões, executarem operações onde todos
os figurinos e objetos cênicos são vermelhos.
Como foi tornando-se comum a Cronenberg em
relação a muitos de seus filmes que vieram depois, “Gêmeos” tem um tratamento
formal, flagrante e frio em relação à seus personagens, o quê não diminui a
carga poderosa de tristeza que esta obra consegue evocar.
Não faltam chances a
Cronenberg para concretizar passagens escatológicas, como em princípio se
esperaria dele, mas ele habilmente as evita, entregando uma narrativa formidável
e sólida, embora não deixe de ficar na memória como uma das experiências mais
tétricas do fim dos anos 1980.
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