terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Gêmeos - Mórbida Semelhança

As inquietações que permeiam a filmografia de David Cornenberg surgem inusitadas em “Gêmeos-Mórbida Semelhança”. Não que o filme seja atípico para seu diretor. Pelo contrário: ele reafirma com potência todos os elementos que ele vinha carregando desde seus primeiros e viscerais trabalhos já nos anos 1970, imbuídos por vezes daquela transgressão característica dos jovens autores, e que o levaram a flertar, e muito, com o gênero de terror e ficção científica. Em algum ponto do fim da década de 1980, Cronenberg percebeu que podia ser, também, elegante. Surgiram assim obras fascinantes. Ele já havia chamado a atenção com o hoje clássico “A Mosca”, refilmagem original e desconcertante de “A Mosca da Cabeça Branca”. Com “Gêmeos”, ele adaptou o livro de Barrie Wood e Jack Geasland, baseado por sua vez em um trágico fato real. Um detalhe interessante nesses dois projetos é o modo intrínseco como Cronenberg parece adotar um projeto paralelo (o remake de outra obra e a adaptação do trabalho literário de outra pessoa) e dele fazer algo tão seu; repleto de suas próprias particularidades e, sobretudo, suas próprias observações acerca das angústias do ser humano.
Interpretados com latejante genialidade por Jeremy Irons, o gêmeos Elliot e Beverly Mantle atuam como ginecologistas, intrigados, desde muito jovens, pelas mutações internas do corpo humano em geral, e do corpo feminino em particular. Para o mais retraído, Beverly, esse fascínio irá se materializar na forma de Claire Nevoau, uma atriz que aparece em sua clínica e que descobrem portar uma rara anomalia uterina. Como todas as mulheres da vida dos gêmeos, Claire acaba dormindo com ambos sem perceber, mas ele exerce em Beverly um efeito mais desestabilizador, dando início a uma espécie de divisão de suas personalidades, até então profundamente dependentes e simbióticas.
Um das grandes obras de Cronenberg, “Gêmeos” é, em inúmeros aspectos, um trabalho brilhante de cinema. A começar pela atuação sem precedentes de Jeremy Irons, que incorpora dois indivíduos iguais e indistintos, mas dá a cada um, uma particularidade, um elemento de sutil percepção cênica que evidencia um do outro, sem jamais cair em armadilhas fáceis para esse tipo de trabalho. Há quem diga que o Oscar de Melhor Ator, conquistado por ele no ano seguinte por “O Reverso da Fortuna” foi uma forma da Academia premiá-lo por este trabalho, bem mais radical e controverso para os padrões comportados do Oscar (e ao assistir o desempenho assombroso de Irons, dá muito bem para acreditar nisso). Se existe no filme outro gênio, ele é sem dúvida seu diretor. Ao usar de seus planos milimetricamente escolhidos e pensados, Cronenberg cria desde o início, um mundo idealizado no qual Elliot e Beverly dividem sua existência, sem nunca descuidar da elaboração nas cenas (plenas de criatividade) em que Irons contracena com si mesmo.
São estranhamente assombrosos, por exemplo, os momentos em que vemos enfermeiros e cirurgiões, executarem operações onde todos os figurinos e objetos cênicos são vermelhos.
Como foi tornando-se comum a Cronenberg em relação a muitos de seus filmes que vieram depois, “Gêmeos” tem um tratamento formal, flagrante e frio em relação à seus personagens, o quê não diminui a carga poderosa de tristeza que esta obra consegue evocar.
Não faltam chances a Cronenberg para concretizar passagens escatológicas, como em princípio se esperaria dele, mas ele habilmente as evita, entregando uma narrativa formidável e sólida, embora não deixe de ficar na memória como uma das experiências mais tétricas do fim dos anos 1980.

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