quinta-feira, 23 de junho de 2016

Globo de Prata

Uma experiência que exige comprometimento, num nível até maior do que outros difíceis e complexos trabalhos do polonês Andrzej Zulawski.
É seu filme mais ambicioso. Logo no início, a narração em off (do próprio Zulawski, como ele mesmo ratifica na cena final) nos informa que algumas partes foram perdidas. É, portanto, necessário compreender a história de sua realização para se tentar chegar a uma compreensão do próprio filme.
Rodado em 1977 e 78, época em que o próprio Zulawski, após uma frutífera carreira na França, conseguiu voltar para filmar em sua Polônia natal, “Globo de Prata” teve suas filmagens interrompidas pelas autoridades comunistas quando ainda restavam seqüências essenciais para serem finalizadas. Zulawski menciona muito ligeiramente esse fato no trecho final, citando cenários e figurinos que foram destruídos, com uma incontornável amargura. As razões para o ocorrido ficam nebulosas, mas provavelmente se devem pelo estilo notoriamente contestador do diretor e de suas obras e, certamente, pelo controverso conteúdo do filme em si, como veremos mais para frente.
A interrupção das filmagens e a perda de algumas cenas já finalizadas tornaram impossível a realização e exibição de “Globo de Prata” por cerca de uma década (diz-se que um quinto de todo o material foi perdido, mas ao assisti-lo a impressão é de que foi muito mais!). Contudo, entre 1986 e 87, Zulawski decidiu montar o filme com o material que sobrou intacto, e tomou a audaciosa decisão de preencher as muitas lacunas com cenas aleatórias, documentais, mostrando uma câmera desvairada a mover-se no meio de multidões em cenários europeus, captando a movimentação das ruas enquanto a voz de Zulawski descrevia didaticamente a cena que se perdeu. Isso ocorre em diversos momentos, muitos deles fundamentais à trama, e a impressão que passa é de um estranhamento brutal, além de uma desconcertante quebra de ritmo, muito prejudicial à narrativa.
Dessa forma, “Globo de Prata” inicia-se num planeta do qual nunca sabemos o nome, onde culturas que replicam a nossa (sem jamais perder aquela aura de “esquisitice alienígena”) parecem conviver. Um índio –ou algo que aparenta ser um índio –encontra um material de filmagem e o entrega à homens sapientes mais superiores, que parecem lhes fornecer alucinógenos (!). Tal filmagem revela assim a trama principal do filme: Quatro astronautas vindos, talvez, do planeta Terra chegam àquele novo mundo num acidente trágico com sua nave espacial. São três homens e uma mulher. Aos poucos eles se adaptam aos perigos daquele planeta e criam uma sociedade: A mulher tem filhos (Thomak), e os filhos dela têm filhos (Thomak II e III, e uma geração de “imitadores”), e logo há toda uma tribo numerosa constituindo assim uma população, composta por distinções de classe.
O único dos quatro astronautas iniciais ainda vivo, Peter, é então, um ancião (ele é que vinha registrando, com uma câmera, todos os percalços que vivenciaram desde a aterrissagem, o quê torna esta primeira parte do filme de Zulawski uma das primeiras experiências em found footage do cinema!). Em seus monólogos diante da câmera ele reflete e questiona sobre a incapacidade de entender a mentalidade desse novo povoado ao qual deram a vida, e cujo crescimento leva à criação de mitos e divindades próprias.
Logo surge a cobiça. Logo surge a guerra. E logo surge a morte.

Na segunda parte, um novo astronauta, Mark, é enviado para esse planeta tempos depois, quando novas gerações se sucederam, e a angústia provocada pela guerra contra seres sinistros e apavorantes leva toda a coletividade a ansiar por um messias, que muitos deles não tardam a presumir ser Mark.
Mas o papel de messias é de uma atribulação pesada demais para Mark suportar, e ele é levado para os mais diversos lados existenciais dessa questão (social, sentimental, político, sexual, abstrato e metafísico) até encontrar um final amargo e trágico.
Essa sinopse não chega sequer perto de ilustrar o caos alegórico que dá corpo ao filme de Zulawski. É inegável que as partes que ficaram faltando são fundamentais para o entendimento do filme, sobretudo as cenas de ligação entre as duas partes da história e o seu final, descrito como estava no roteiro, mas definitivamente omitido de forma frustrante no filme. As cenas que ficaram (e que impressionam!) mostram o filme ousado, de escopo épico e caráter subversivo que Zulawski estava moldando.
Tal e qual cada um dos seus trabalhos, ele é denso e desgastante. Zulawski encoraja os atores a improvisar, e esse improviso quase sempre versa sobre as mais abstratas filosofias (como o delírio verbal de Isabelle Adjani em “Possessão”) expondo idéias de maneira verborrágica, sem quaisquer esclarecimentos.
Aos poucos, em meio à essa loquacidade insana, as referências religiosas começam a ficar mais claras: A primeira parte de “Globo de Prata” é, pois, um quase eufemismo do Velho Testamento Bíblico; e, por conseqüência, a segunda (com o personagem Mark sendo crucificado numa cena sangrenta e perturbadora) é o Novo Testamento.
Uma obra sem paralelo (inclusive na desconcertante filmografia de Andrzej Zulawski), “Globo de Prata” permanece enigmático e incompleto, questionador e perturbador, um produto ímpar de uma mente que atreveu-se a unir o inconformismo existencial de Andrei Tarkovski ao choque controverso e premeditado de Píer Paolo Passolini.

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