segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Hausu

Realmente, trata-se de uma experiência e tanto: Lisérgico, ousado, alucinógeno, incategorizável, fragmentado, esquizofrênico.
Todos esses são alguns dos poucos adjetivos cabíveis para a obra profundamente desafiadora concebida por Nobuhiko Obayashi, a partir de uma trama imaginada por sua filha de cinco anos de idade. Por ser essencialmente visual, optei por uma resenha que viesse acompanhada de várias fotos, pelas quais se percebe o caráter alucinógeno do filme.
O resultado une uma idiossincrática e colorida visão infantil à um despojado e irrequieto experimentalismo para contar uma história que começa como conto de fadas, assume ares de comédia histérica e musical para, em seguida, converter-se vertiginosamente num perverso filme de terror (!), e mesmo essa descrição ainda não abarca de maneira plenamente satisfatória o quê “Hausu” é.
A colegial Bonita (os nomes das personagens, como você verá, são todos estranhamente e ingenuamente ilustrativos de quem elas são), frustrada devido aos rumos tomados pela relação algo edipiana que tem com o pai –ele decidiu passar o fim de semana com a nova namorada –resolve carregar suas histriônicas amigas adolescentes para a casa da tia, que não via desde pequena.
Além da protagonista, as adolescentes são Kung Fu, perita em lutas; Melodia, que ama música; Fantasia, que cai na armadilha narrativa de ser a única que enxerga as assombrações, na qual as outras não acreditam; Prof, que é metida a esperta; Mac, que come sem parar (faz lembrar até a personagem Magali, de Maurício de Souza!); e Sweetie, toda meiga e vaidosa.

Uma vez na casa da tia –que se mostra tão esquisita quanto sinistra –essas jovens deixam passar despercebidas uma série de pistas indicativas de que podem estarem, todas elas, em uma grande encrenca: A mulher, afinal, é uma espécie de vampira encantada (!) que devora jovens para preservar sua vivacidade e juventude (nunca fica muito claro como ou porquê), assim como seu gato persa é dotado de estranhos poderes com os quais pode manipular toda a realidade da casa onde estão (!!), proporcionando às jovens uma noite de pesadelo crescente.
Nessa lógica tortuosa (que obedece tanto uma imaginação pueril quanto a mecânica de um sonho), Mac é a primeira a desaparecer, mutilada sem maiores explicações (!): E, portanto, sua cabeça faz uma aparição para a desconcertada Fantasia!
Na sequência é Sweetie que é aparentemente engolida pelos colchões, cobertores e travesseiros de um quarto (!), e transformada numa boneca (!!).
Embora o filme reserve um destino de natureza macabra para cada uma das garotas, nenhum deles prima por uma percepção violenta ou convencional de um desfecho reservado a um personagem de filme de terror: Parecem definidos mais por uma consequência quase sempre irônica e ocasionalmente sarcástica da natureza que rege as próprias personagens.
É uma qualidade instintiva bastante notável na obra de Obayashi, embora infindáveis detalhes corram o risco de passar batido diante do vendaval de pormenores técnicos, artísticos e narrativos plantados por sua direção ao longo das cenas.

O andamento do filme privilegia assim, menos os sustos (embora muitos possam dizer que, aqui, os sustos existam, sim) e mais o absurdo: Uma das jovens, Melodia, por exemplo, é comida por um piano (!!!).
Apenas a protagonista, Bonita, parece ter um propósito mais intrínseco junto aos meandros sobrenaturais que regem a estranha casa (talvez como uma refém existencial por conta de seu parentesco de sangue com a 'vampira/bruxa/tia'), mas mesmo isso não é algo que fica muito claro.
Se por um lado, essas escolhas aparentemente aleatórias de estilo (e que simultaneamente provocam uma impressão plena da bizarrice) parecem remeter à comédias histéricas e de apelo infanto-juvenil tal é a profusão quase insuportável de cores, surgem também, momentos em que fica claro que não são os jovens o público alvo: Muitos dos momentos de terror contêm cenas ofensivas à sensibilidade dos mais novos, e o filme não se furta de mostrar cenas de nudez –e até mesmo um sutil lesbianismo –da parte das jovens protagonistas.

O subtexto sexual, inclusive, é abundante em perversões: Não apenas fica clara a atração incestuosa da heroína pelo pai, como também é nítido (e cômico) o flerte desavergonhado de um dos professores com uma das adolescentes; um coadjuvante, diga-se, ilustrativo dos rumos quase inacreditáveis dados às suas tramas paralelas (pois, o filme tem muitas delas).
Todos esses elementos, somados, transformam “Hausu” numa experiência deveras única, fruto da profunda orientação experimental do diretor Nobuhiko Obayashi que cria cenas empregando infindáveis técnicas de cinematografia que muitas vezes incrementam a narrativa sem no entanto torná-la apetecível à expectadores habituados à normalidade. A partir de um determinado ponto seu filme surta sem garantias de retorno à algum tipo de sanidade. É uma espécie de submissão ao terror: Diferente do que se entende por convencional ao gênero, onde o sobrenatural se adapta à realidade espreitando das sombras, a obra de Obayashi propõe uma inversão; como em "Alice No País das Maravilhas" é a realidade que se dobra ao lisérgico e ao inacreditável, sendo moldada num pesadelo colorido e alucinante, tão mais amedrontador por sua ausência completa de uma zona de conforto.
Certamente não é o mais assustador dos filmes nipônicos, mas corre o sério risco de ser o mais estranho e eclético.

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