É provável que este seja o mais comercial
dentre todos os filmes de David Cronenberg –apesar da larga aprovação de
público de obras como “Marcas da Violência” e “Senhores do Crime” –embora ele,
mesmo assim, não se submeta às convenções industriais de Hollywood.
O produtor Mel Brooks fez a mais feliz das
escolhas ao selecionar Cronenberg para tocar o projeto que refilmaria o
semi-clássico “A Mosca da Cabeça Branca”. Ao assumir a produção, Cronenberg
manejou o material até extrair dele todas as inquietações que já começavam a
definí-lo, então, como um autor estabelecido: “A Mosca” é, em essência, um terror
sobre os riscos do uso incauto da tecnologia.
Uma mensagem que já existia no filme original,
é verdade, mas que na transfiguração (muito mais que uma refilmagem!)
proporcionada por Cronenberg se converte num pesadelo kafkiano de mutação
gradativa na qual os horrores de abandonar a forma humana –seja em nível
físico, racional ou até metafísico –são enfatizados pela aguda percepção com a
qual o diretor embasa a perplexidade dramática e pessoal, ou pela maquiagem
minimalista e chocante de Chris Wallas (que responde, por sua vez, pelo único
Oscar que a obra recebeu).
No papel de Seth Brundle, Jeff Goldblum vive o
personagem ao qual ele passou a ser para sempre relacionado –à despeito da
participação anterior em “O Reencontro”, e de sua presença em grandes sucessos
de bilheteria como “Jurassic Park” e “Independence Day”.
Brundle é um cientista muito próximo da
conclusão de uma revolucionária máquina de teleporte. Para testemunhar tal
feito, ele chama a bela jornalista Verônica Quaife (Geena Davis), com quem logo
se envolve.
Uma certa noite, porém, Brundle
inadvertidamente usa o teleporte em si mesmo (ele não havia tentado teleportar
humanos) e, embora a experiência funcione, ele acaba entrando junto com uma
mosca dentro a câmara de teleporte.
O resultado, despercebido de imediato, é que
Brundle vai, pouco a pouco, abandonando traços de humanidade, para se tornar um
ser hediondo e grotesco, misto de homem e inseto.
E é lógico que nas mãos de Cronenberg, tal
argumento serve à uma detalhada sondagem do processo de mutação a que o
protagonista irá se submeter; mais do que as transformações físicas –e elas são
evidentes, explícitas, mostradas num nível tamanho de realismo e despojamento
que suas imagens levam tempo a deixar a memória do expectador, e podem ser
francamente nauseantes para alguns –Cronenberg conduz a trama com equivalente
interesse nas transformações existenciais e internas de Brundle, que abraça sua
metamorfose sem a aflição e o desespero que se vê no desafortunado protagonista
de “A Mosca da Cabeça Branca”. Ao contrário dele, Brundle se mostra regozijado
com as novas condições de seu corpo (chegando a sequestrar Verônica ao
descobrir que ele espera um filho seu e, portanto, uma criança também sob os
efeitos em potencial de sua transformação), até mesmo quando elas parecem
realmente repulsivas; uma demonstração incontornável de Cronenberg de que sua
mente, sem dúvida, foi também ela, modificada –o quê no final das contas
importa muito mais ao diretor canadense, e ao potencial drama que ele
desenlaça, do que à mera premissa apavorante.
Um trabalho brilhante em
todos os sentidos.
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