Só Deus sabe as razões pelas quais este filme
recebeu esse título nacional inapropriado e absolutamente sem sentido, uma vez
que não há qualquer menção à uma tocha ou a alguém de nome Zen em sua história.
Alguma explicação talvez resida no título em inglês, “A Touch Of Zen”, mas cuja
tradução seria mais precisamente “Um Toque Zen”, devido às aplicações do zen
budismo da trama, ainda que seu título original, “Xia Nü”, queira dizer “Uma
Guerreira” –de qualquer maneira, seria difícil que um mero título conseguisse
apreender a riqueza e a complexidade de toda a trama, que se desdobra em
inúmeras seqüências inesperadas e reforça uma imprevisibilidade notável que a
narrativa de King Hu impõe ao filme conforme suas cenas se sucedem e conduzem à
novas percepções agregando tintas épicas, míticas e múltiplas à uma premissa
que começa simples e tímida.
Um jovem e estudioso ilustrador, vivendo com a
mãe na China Antiga, obtêm sustento à duras penas, tanto que têm que morar em
um forte abandonado por ser o único lugar onde não precisam pagar. Logo,
junta-se a eles uma jovem bastante misteriosa, a medida que ela vai se
afeiçoando ao rapaz, ele descobre ser ela uma princesa fugitiva, perseguida por
oficiais a mando do imperador e, ao que parece, protegida de uma seita de
monges superpoderosos (!).
Inúmeros embates se seguem entre o grupo dela
(ao qual o rapaz acaba aderindo) e os sucessivos agentes do império que se
apresentam de maneira engenhosamente episódica ao longo da narrativa enquanto
ela trata de surpreender o expectador com uma audaciosa inversão de papéis: É a
moça o integrante forte do casal central, protagonizando as cenas de luta
física e mostrando coragem e energia quando necessário, enquanto que o jovem
tímido, não apenas deixa de participar dos momentos de ação, como seu destaque
ocorre mais na área estratégica –ainda que, em determinado ponto, mesmo esse
aspecto dele mostra-se imprescindível aos personagens, colocando-o quase num
papel de liderança.
Esse fator é só um dos muitos detalhes curiosos
com os quais o diretor King Hu povoa seu trabalho, todo ele incomum, chegando
inclusive a atingir as três horas de duração.
Tal postura, indiscutivelmente artística, é
assumidamente uma das grandes influências de Ang Lee para o fenomenal “O Tigre
e O Dragão”. Contudo, se Ang Lee dispunha de recursos como os cabos de
sustentação (que permitiam aos atores encenar os saltos que desafiavam a
gravidade e, depois, eram apagados das cenas por computação gráfica), a obra de
King Hu, lançada em 1969, não dispunha de tal arrojo: A saída para materializar
em imagens as cenas prodigiosas onde, em meio às lutas de espada, os
personagens parecem voltar pelo ar (um artifício típico do gênero wuxia
presente já nos livros de literatura pulp nos quais todos aqueles filmes se
inspiravam) foi utilizar um leque de opções inventivas para moldar as cenas
–são usados enquadramentos de câmera, trampolins, camas elásticas e toda sorte
de truques cênicos, tudo isso mesclado com admirável habilidade pela edição
extremamente virtuosa (e inovadora) do filme.
Agregando à sua narrativa
uma percepção inédita dessa sinergia das artes marciais, uma direção de arte
cheia de propriedade e critério e uma vastidão de recursos objetivos e bem
empregados, King Hu transforma seu épico num turbilhão revolucionário de evocativas e
coloridas imagens em movimento.
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