terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A Tocha de Zen

Só Deus sabe as razões pelas quais este filme recebeu esse título nacional inapropriado e absolutamente sem sentido, uma vez que não há qualquer menção à uma tocha ou a alguém de nome Zen em sua história. Alguma explicação talvez resida no título em inglês, “A Touch Of Zen”, mas cuja tradução seria mais precisamente “Um Toque Zen”, devido às aplicações do zen budismo da trama, ainda que seu título original, “Xia Nü”, queira dizer “Uma Guerreira” –de qualquer maneira, seria difícil que um mero título conseguisse apreender a riqueza e a complexidade de toda a trama, que se desdobra em inúmeras seqüências inesperadas e reforça uma imprevisibilidade notável que a narrativa de King Hu impõe ao filme conforme suas cenas se sucedem e conduzem à novas percepções agregando tintas épicas, míticas e múltiplas à uma premissa que começa simples e tímida.
Um jovem e estudioso ilustrador, vivendo com a mãe na China Antiga, obtêm sustento à duras penas, tanto que têm que morar em um forte abandonado por ser o único lugar onde não precisam pagar. Logo, junta-se a eles uma jovem bastante misteriosa, a medida que ela vai se afeiçoando ao rapaz, ele descobre ser ela uma princesa fugitiva, perseguida por oficiais a mando do imperador e, ao que parece, protegida de uma seita de monges superpoderosos (!).
Inúmeros embates se seguem entre o grupo dela (ao qual o rapaz acaba aderindo) e os sucessivos agentes do império que se apresentam de maneira engenhosamente episódica ao longo da narrativa enquanto ela trata de surpreender o expectador com uma audaciosa inversão de papéis: É a moça o integrante forte do casal central, protagonizando as cenas de luta física e mostrando coragem e energia quando necessário, enquanto que o jovem tímido, não apenas deixa de participar dos momentos de ação, como seu destaque ocorre mais na área estratégica –ainda que, em determinado ponto, mesmo esse aspecto dele mostra-se imprescindível aos personagens, colocando-o quase num papel de liderança.
Esse fator é só um dos muitos detalhes curiosos com os quais o diretor King Hu povoa seu trabalho, todo ele incomum, chegando inclusive a atingir as três horas de duração.
Tal postura, indiscutivelmente artística, é assumidamente uma das grandes influências de Ang Lee para o fenomenal “O Tigre e O Dragão”. Contudo, se Ang Lee dispunha de recursos como os cabos de sustentação (que permitiam aos atores encenar os saltos que desafiavam a gravidade e, depois, eram apagados das cenas por computação gráfica), a obra de King Hu, lançada em 1969, não dispunha de tal arrojo: A saída para materializar em imagens as cenas prodigiosas onde, em meio às lutas de espada, os personagens parecem voltar pelo ar (um artifício típico do gênero wuxia presente já nos livros de literatura pulp nos quais todos aqueles filmes se inspiravam) foi utilizar um leque de opções inventivas para moldar as cenas –são usados enquadramentos de câmera, trampolins, camas elásticas e toda sorte de truques cênicos, tudo isso mesclado com admirável habilidade pela edição extremamente virtuosa (e inovadora) do filme.
Agregando à sua narrativa uma percepção inédita dessa sinergia das artes marciais, uma direção de arte cheia de propriedade e critério e uma vastidão de recursos objetivos e bem empregados, King Hu transforma seu épico num turbilhão revolucionário de evocativas e coloridas imagens em movimento.

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