O diretor David Cronenberg adora capturar seus
personagens em um momento de transição. Como na cena que abre este
“Enraivecida”, antes mesmo dos créditos iniciais, quando um dos personagens
contempla a protagonista, sua namorada (interpretada pela ex-atriz pornô
Marilyn Chambers) ao sair de alguma lanchonete, ou coisa assim. Lembra o começo
de “Marcas da Violência”, que Cronenberg filmou trinta décadas depois, mas com
o mesmo senso de observação e estilo.
De fato, é e sempre foi a transição uma das
grandes questões da carreira dele. A transição que ele registrou em todos os
níveis, mas, sobretudo, com obcecada atenção, a transição física, daquilo que
se pressupõe normal para outra coisa, absolutamente anormal. A mutação.
E esse torna, realmente, a ser o enfoque em
“Enraivecida”, quando ele mostra que aquele casal do início haverá de sofrer um
terrível acidente automobilístico (o quê faz lembrar “Crash-Estranhos Prazeres”
e aí percebemos também que Cronenberg é aquele tipo raro de autor cujos
trabalhos são interligados por percepções e intenções que os transformam assim
em “assombrações” uns dos outros).
Nos anos 1970 de então, e sem um hospital
adequado por perto, exceto uma suspeita clínica de cirurgia plástica, a moça,
bastante ferida, é encaminhada para os cirurgiões, que decidem tentar nela uma
operação radical: Fazer enxertos experimentais de carne e pele nas regiões
avariadas.
É claro que algo dá errado: Ela desenvolve uma
espécie de ferrão em sua axila (!), por meio do qual é capaz de beber o sangue
de outras pessoas –única coisa que, a partir de então, é capaz de saciar sua
fome! –e esses ataques, ao invés de matar suas vítimas as fazem contrair uma
espécie de doença, similar à raiva, na qual passam a atacar outras pessoas, à
exemplo dos mortos-vivos.
Quando ela consegue fugir dessa clínica, seus
sucessivos ataques produzem assim uma verdadeira horda de pessoas infectadas
que começa a se alastrar por todo o Canadá.
Amparado em diversos
cânones do gênero terror, Cronenberg concebe uma salada de elementos até
bastante elegante e curiosa (em vista do equívoco que poderia ter sido),
valendo-se do que é uma de suas produções de orientação mais comercial até
então, e mesmo assim ainda há, nessa obra aparentemente sem pretensões, um notável
subtexto prontamente passível de interpretação, no qual se pode ver com certa
evidência uma relação entre a condição da personagem principal e os portadores
de doenças venéreas. A protagonista, inclusive, se mantém indiferente e alheia
ao terrível mal que propaga durante boa parte da história.
Eis, de repente, a
observação primordial que Cronenberg se permite: O vislumbre de acaso que também
contribui para os mais imprevisíveis males na cadeia de acontecimentos
entrecruzados da vida –e que não deixam de revelar sua irônica sina de crime e
castigo no emblemático a amargo final.
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