quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Enraivecida - Na Fúria do Sexo

    O diretor David Cronenberg adora capturar seus personagens em um momento de transição. Como na cena que abre este “Enraivecida”, antes mesmo dos créditos iniciais, quando um dos personagens contempla a protagonista, sua namorada (interpretada pela ex-atriz pornô Marilyn Chambers) ao sair de alguma lanchonete, ou coisa assim. Lembra o começo de “Marcas da Violência”, que Cronenberg filmou trinta décadas depois, mas com o mesmo senso de observação e estilo.
    De fato, é e sempre foi a transição uma das grandes questões da carreira dele. A transição que ele registrou em todos os níveis, mas, sobretudo, com obcecada atenção, a transição física, daquilo que se pressupõe normal para outra coisa, absolutamente anormal. A mutação.
     E esse torna, realmente, a ser o enfoque em “Enraivecida”, quando ele mostra que aquele casal do início haverá de sofrer um terrível acidente automobilístico (o quê faz lembrar “Crash-Estranhos Prazeres” e aí percebemos também que Cronenberg é aquele tipo raro de autor cujos trabalhos são interligados por percepções e intenções que os transformam assim em “assombrações” uns dos outros).
     Nos anos 1970 de então, e sem um hospital adequado por perto, exceto uma suspeita clínica de cirurgia plástica, a moça, bastante ferida, é encaminhada para os cirurgiões, que decidem tentar nela uma operação radical: Fazer enxertos experimentais de carne e pele nas regiões avariadas.
     É claro que algo dá errado: Ela desenvolve uma espécie de ferrão em sua axila (!), por meio do qual é capaz de beber o sangue de outras pessoas –única coisa que, a partir de então, é capaz de saciar sua fome! –e esses ataques, ao invés de matar suas vítimas as fazem contrair uma espécie de doença, similar à raiva, na qual passam a atacar outras pessoas, à exemplo dos mortos-vivos.
    Quando ela consegue fugir dessa clínica, seus sucessivos ataques produzem assim uma verdadeira horda de pessoas infectadas que começa a se alastrar por todo o Canadá.
    Amparado em diversos cânones do gênero terror, Cronenberg concebe uma salada de elementos até bastante elegante e curiosa (em vista do equívoco que poderia ter sido), valendo-se do que é uma de suas produções de orientação mais comercial até então, e mesmo assim ainda há, nessa obra aparentemente sem pretensões, um notável subtexto prontamente passível de interpretação, no qual se pode ver com certa evidência uma relação entre a condição da personagem principal e os portadores de doenças venéreas. A protagonista, inclusive, se mantém indiferente e alheia ao terrível mal que propaga durante boa parte da história.
    Eis, de repente, a observação primordial que Cronenberg se permite: O vislumbre de acaso que também contribui para os mais imprevisíveis males na cadeia de acontecimentos entrecruzados da vida –e que não deixam de revelar sua irônica sina de crime e castigo no emblemático a amargo final.

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