quinta-feira, 23 de março de 2017

Santuário Mortal

Diretores de terror que exerceram sua função no passado –em especial, entre os anos 1950, 60 e 70 –valeram-se de muitos ícones da literatura para dar corpo às suas obras, tais como Edgar Alan Poe, H.P. Lovecraft e outros.
Cineastas como Roger Corman e Mario Bava são particularmente relacionados a essas adaptações e, como a comparação aos dois parece ter sido inevitável devido ao perfil da carreira do espanhol Jess Franco, também ele, enveredou por adaptações –ele fez, por exemplo, uma versão infame e notória de “A Queda da Casa de Usher”.
Conforme Jess Franco moldava uma espécie de carreira involuntária, aos trancos e barrancos, a medida que as limitações orçamentárias permitiam as materializações de suas maluquices, e se afastava da elegância e sofisticação que ele tentou impor em seus primeiros trabalhos (embora, certamente, na opinião do próprio ele sempre tenha feito um cinema elegante e sofisticado...), as influências literárias também mudavam, conduzindo-o a projetos que se mostraram definitivos para a forma com que Jess Franco é percebido pelo público hoje.
Um dos (poucos) períodos de “vacas gordas” experimentados por Franco foi quando o produtor Harry Alan Towers bacou alguns de seus projetos, incluindo este, “Santuário Mortal”, inspirado na obra literária “Justine” do Marquês De Sade, um filme bastante significativo para o Jess Franco de obras quase descontroladas, compostas por improvisos nem sempre inspirados, caóticas, quase mambembes, tal e qual “Pesadelos Noturnos”, “Macumba Sexual” e outras presepadas.
Eu não quero ser injusto para com Franco. É verdade que seus filmes têm algo mais, do contrário, não seriam comentados e relembrados, hoje, quarenta anos (ou até mais) de muitas de suas realizações. Talvez, seja essa sensação de possibilidades inúmeras que seu ritmo e sua encenação solta passam ao expectador –tem-se a impressão de que a qualquer momento pode ocorrer algo deliciosamente absurdo, como a aparição injustificada de um monstro, a introdução súbita de elementos sobrenaturais, ou uma seqüência abrupta de nudez.
Todavia, não é bem isso que se vê aqui.
Este filme introduz um prólogo, em uma cela de cadeia, onde o Marquês De Sade em pessoa (vivido por Klaus Kinski, no que me fez lembrar vagamente de “Os Contos Proibidos do Marquês De Sade”) tem uma série de delírios que aparentemente lhe despertam inspiração para escrever a trama que de fato se descortina no filme: Século 18. França. Justine (a jovem Romina Power) e sua irmã Juliette (Maria Rohm) deixam o convento onde foram educadas após o desaparecimento de seu pai.
Uma vez em Paris, as duas seguem caminhos distintos: Enquanto Juliette cede às necessidades e ingressa num prostíbulo, Justine opta por preservar suas virtudes e arruma inicialmente um serviço como empregada. Porém, vítimas de enganações, trapaças e mentiras, Justine sofre várias desventuras que a conduzem, por fim, a um antigo santuário, na qual suas esperanças de voltar a viver em oração e harmonia como no velho convento, se renovam.
Ledo engano, é provavelmente este trecho –emblemático para o filme e, por que não, para o próprio Jess Franco –que justifica o título nacional, “Santuário Mortal”.
Comandado por um endiabrado e delirante Jack Palance, vivendo um certo Irmão Antonin, o lugar acomoda monges devassos e alucinados que promovem orgias e festividades obcenas das quais a pobre Justine será vítima.
Embora a “moral” do filme seja a de que o excesso de bondade conduz ao sofrimento (Juliette, a irmã inescrupulosa sai-se bem melhor), a possível intervenção do produtor amenizou muito do teor que este filme poderia vir a ter: Jess Franco realizou obras infinitamente mais erotizadas, sanguinárias e conturbadas.
Esta produção foi então o mais próximo que o espanhol maluco chegou do esquema de produção comercial, embora isso, de certa maneira, o tenha afastado um pouco de si mesmo.

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