sexta-feira, 14 de abril de 2017

A Montanha Sagrada

Difícil apreender num texto o quê é “A Montanha Sagrada”. Parte delírio esotérico, parte dissertação sobre a natureza mística do mundo, ele começa numa cena com o personagem interpretado pelo próprio diretor e roteirista (e produtor, co-autor da trilha sonora, co-figurinista, co-diretor de arte...) Alejandro Jodorowsky: O Alquimista.
Ele executa um ritual onde remove as roupas de duas mulheres em transe, e delas corta todo o cabelo. A cena é enigmática, assimétrica e profundamente alegórica.
Todo restante do filme será assim –é preciso avisar.
Leva um certo tempo até que as percepções do expectador entrem em sintonia com a proposta de Jodorowsky (se é que isso acontece!). Ele não faz concessões. Não se mostra inteligível. Não oferece pistas para seus mistérios. Não facilita em nada.
Seu filme é difícil, denso, detalhado e complexo. Fala de mais abstrações que a mente é capaz de recordar, e não as dispõe numa narrativa linear.
Tudo é uma sucessão de acontecimentos que, pelo menos durante toda a primeira metade de filme, soa completamente aleatório (não é, está tudo lá por uma razão).
Um homem surge sujo e decrépito (e todo mijado!) num vilarejo arenoso. Alguns meninos todos sem roupa (e com as genitais pintadas de verde!) aparecem para apedrejá-lo enquanto está amarrado à uma madeira –e aí, a analogia com Cristo é imediata e uma das poucas que se mostrará clara ao longo do filme. Ele é amparado por um homem sem pernas e braços –a lembrar bastante o deficiente de “El Topo”.
Os dois andam pelas ruas do México onde se deparam com inúmeros absurdos: Um desfile escatológico de soldados, os mesmos soldados que depois recebem um grupo de turistas de maneira intratável (embora todos pareçam compactuar com isso); depois, um grupo mambembe encena a conquista das Américas e do Império Maia (representado por iguanas numa maquete) pelos espanhóis (representados por sapos), ainda que a explanação histórica deles não passe de grunhidos inaudíveis (!); doze prostitutas (entre as quais, uma criança!) caminham pelas ruas acompanhadas de um macaco (símbolo primário da ciência –que afirma ter o homem evoluído do macaco –em contraponto à religião), até encontrarem o messias do início.
Todo esse entrecho carrega a crítica metafórica de Jodorowsky para com as mazelas da sociedade humana: Os regimes ditatoriais, a exploração do sexo, o consumismo, o monopólio ideológico da Igreja, a política, as guerras. Tudo isso tornando perplexo o seu messias.
Essa espécie de Jesus Cristo encontra um bando de arremedos de romanos –eles o crucificam, mas por pouco tempo: Apenas o suficiente para fazer dele uma réplica de isopor, a qual venderão para benefício próprio (para desespero do messias).
O Alquimista reaparece um pouco mais tarde, quando esse messias escala uma torre e nela encontra outros seres de suposta divindade.
São todos representantes de cada um dos planetas do Sistema Solar.
Nesse instante, a narrativa de Jodorowsky –já pra lá da metade da obra –finalmente assume um propósito: Os nove indivíduos –entre eles o messias –cada um a representar um planeta, iniciam uma peregrinação, ao lado do Alquimista, em busca da Montanha Sagrada da Ilha de Lótus onde, acreditam, haverão de substituir os Mestres Imortais lá reunidos em seu cume, e assim herdar seu poder e sua imortalidade.
A trajetória é complexa e exige, sobretudo, uma série de abnegações (de valores, de materiais, de objetivos e até mesmo de certa integridade física) e de rituais.
Após tudo isso (e um sem fim de seqüências estarrecedoras), a Montanha Sagrada os espera, onde Jodorowsky faz uma sincera (mas não menos desestabilizadora) dedicatória à pluralidade do mundo e da vida.
É difícil chegar ao fim de “A Montanha Sagrada”, mais ainda de apreciá-lo sem ressalvas, mas trata-se de uma obra feita por um autor que tem muita coisa a dizer. E um irrestrito embasamento artístico para fazê-lo.

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