terça-feira, 2 de maio de 2017

71 Fragmentos de Uma Cronologia do Acaso

Assim como em “O Sétimo Continente”, Michael Haneke parte de uma trágica e alarmante notícia de jornal como ponto de partida de sua narrativa, embora a última coisa que lhe ocorra seja uma reconstituição convencional dos fatos.
Como o próprio título já permite decifrar, ele concebe uma sucessão de pequenas cenas, “fragmentos” que, separados todos por um fade elíptico e abrupto, parecem saltar de situação em situação personagem em personagem, e durante boa parte de sua enxuta duração, aparentam nada mostrar: Um pequeno órfão de Bucareste chegando clandestinamente à Áustria; um jovem militar invadindo o armário de armas do quartel-general; um casal de classe média às voltas com a doença da filha pequena e com uma deprimente crise matrimonial que se instala; um rapaz encontrando gradativa dificuldade em interagir socialmente; um senhor de meia idade e sua complicada relação com a filha esnobe, gerente de um banco; outro casal tentando adotar uma criança, a despeito da imensa incompatibilidade emocional que a menina ostenta; entremeando esses corriqueiros registros cotidianos, o diretor contrapõe cenas de um noticiário envolvendo, não raro, conflitos mundiais que nunca cessam, detalhes redundantes em meio à guerra, e celebridades, numa forma de expor a futilidade com que a mídia absorve os acontecimentos do nosso mundo.
Haneke joga assim com a pressuposição subconsciente do expectador de que, em algum momento, essas pontas soltas irão se juntar; e isso até ocorre, mas não definitivamente da maneira como esperamos.
Em todos os seus trabalhos, Haneke oferece ao expectador uma arquitetura cênica na qual as criteriosas posições de câmera (ou os econômicos e contundentes movimentos que ela irá realizar) são tão fundamentais ao desdobramento da trama quando as ações dos personagens.
Ele também oferece duas notáveis seqüências –uma no início, a outra já no desfecho –em que a câmera assume uma posição semelhante em ambas (um contra-plongeé radical acompanhando a caminha de um personagem; o pequeno órfão na primeira, o rapaz anti-social na segunda) fazendo lembrar um ponto de vista subjetivo superior e, arrematando esta obra fragmentada entre essas duas extremidades.
Parte daí, de certa forma, a concepção que orienta essa narrativa: A de que, em última instância, estamos a lidar com peças de um quebra-cabeças sofisticado, na forma de pedaços aleatórias de trama, por meio dos quais, em sua amplitude, diversidade e interação (ou ausência de interação) Haneke vislumbra a banalidade de tudo e o acaso que aflige as vidas humanas.

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