terça-feira, 2 de maio de 2017

Depois do Vendaval

Há um encanto todo particular nesta obra, uma das poucas onde o grande John Ford afastou-se do faroeste, o gênero que lhe concedeu a grandeza em Hollywood. E, de fato, ver John Wayne em cena vestido nos figurinos da década de 1920 (durante a qual o filme se passa) provoca uma curiosa sensação –também ele e sua persona parecem, de início, deslocados fora das características de cowboy a que lhe foram atribuídas.
Mas, este é só mais um dos inúmeros detalhes cativantes deste belíssimo trabalho, pelo qual John Ford ganhou o Oscar de Melhor Diretor em 1952 (Ford ganhou em outras três ocasiões, sendo o recordista nessa categoria) e que foi agraciado também com o Oscar de Melhor Fotografia (os dois cinegrafistas premiados, Winton C. Hoch e Archie Stout, compuseram imagens idílicas, de uma colorização discreta e de beleza luminosa e serena, vindo de encontro ao que possivelmente deve ser uma idealização do diretor).
Ele mesmo um imigrante irlandês que tentou a sorte nos EUA (assim como o protagonista), John Ford criou aqui uma declaração de amor à sua terra natal: A Irlanda surge como um ambiente de tradições tão arcaicas quanto graciosas, de pessoas religiosas e respeitadoras de um código de honra com o qual o cinema da Velha Hollywood se identificava muito mais do que hoje em dia, de bares freqüentados por consumidores de cerveja preta, briguentos e cantores de belas cantigas populares irlandesas.
É para esse mundo que regressa Sean (John Wayne, num grande trabalho), um ex-boxeador que lá nasceu e que para La voltou por conta de uma tragédia pessoal (esmiuçada com clareza e economia de recursos louvável pela narrativa) com planos de por lá ficar.
Como em todas as circunstâncias onde um aparente forasteiro tenta se estabelecer numa comunidade mais antiquada e fechada, ele encontra certa hostilidade. E ela vem exclusivamente do avarento Danaher (Victor McLaglen, divertidamente implicante), justamente o irmão mais velho da linda e temperamental ruiva, Mary Kate (Maureen O’ Hara, charmosa e irresistível), por quem Sean acaba se enamorando.
Essa pequena rusga começa a criar proporções mais complicadas para o protagonista quando ele por fim consegue casar-se com a mulher que ama, embora seu irmão se recuse –como é costume ancestral na Irlanda –a dar-lhe o dote, o quê a deixa infeliz e estremece a relação entre ela e Sean.
Os desenlaces narrativos pensados por John Ford deixam bem claro o quanto sentimentos como rancor e melancolia passam longe de suas reminiscências: Esta é uma comédia, e os percalços registrados por ele, do início ao fim, constroem uma atmosfera da qual o expectador sairá com um indelével sorriso no rosto.
A seqüência de cenas memoráveis impressiona: Maureen O’ Hara, surpreendida por John Wayne na ainda desabitada casa em que irão morar, é puxada pelo braço de encontro ao peitoral dele e, ao som exclusivo do silvo do vento, trocam um beijo (tão maravilhosa essa cena é que o próprio Steven Spielberg a refez, a título de homenagem, em “E.T.”); a chuva que cai sobre os protagonistas, de maneira lírica, no encontro no cemitério; a corrida de cavalos transcorrida nas margens arenosas de uma praia, onde os cavaleiros disputam não chegar na frente uns dos outros, mas alcançar os chapéus deixados pelas donzelas em estacas na areia –e esse momento deixa bastante claro a enorme perícia de John Ford em trabalhar cenas coletivas –e, por falar em cenas coletivas, o quê dizer da seqüência final, quando John Wayne arrasta Maureen O’ Hara pela mão, seguido por toda a aldeia, até a casa do irmão dela? Um dos grandes momentos do filme, senão do cinema!

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