Pode-se estabelecer uma comparação, no que diz
respeito a processos criativos, a realizadores que praticamente não têm coisa
alguma em comum. Isso fica perceptível quando observo um dos primeiros filmes
de maior expressão do famigerado Lars Von Trier, “Ondas do Destino”, lançado em
1995.
Não existe qualquer identificação entre ele e o
diretor-roteirista Cameron Crowe (do maravilhoso “Quase Famosos”), mas entre
eles existe uma quase similaridade: Assim como Crowe, Lars Von Trier saiu muito
melhor nos filmes em que sua auto-censura o inibiu a fim de moldar um trabalho
mais austero.
E nesse sentido, “Ondas do Destino” é,
seguramente, seu melhor trabalho.
Foi também o filme que estabeleceu o cinema que
Von Trier faria dali por diante: Se obras anteriores como “Europa”, “Elemento
do Crime” e “O Reino” lançavam mão de subterfúgios fantasiosos e até
sobrenaturais, a partir deste filme, Von Trier –com raras exceções –passou a se
debruçar sobre a realidade nua e crua e, em especial, a um tema que foi se
tornando cada vez mais caro à sua filmografia, o sexo.
Dividido por capítulos (anunciados em irônicos
intertítulos), como é do agrado de seu diretor, “Ondas do Destino” acompanha a
história de Bess (Emily Watson, absolutamente brilhante) que vive numa intransigente
comunidade religiosa nas ilhas Hébridas Exteriores. Para a perplexidade de seus
familiares, que temem por sua segurança já que Bess sofre de alguns distúrbios
psicológicos, ela se apaixona por Jan (Stellan Skarsgaard), um rapaz sueco que
trabalha em uma plataforma petrolífera no Mar do Norte.
Eles se casam, e iniciam um relacionamento
feliz, perturbado apenas pelos ocasionais períodos em que Jan tem de afastar-se
de Bess para trabalhar, quando ela é assolada por uma irreprimível tristeza.
Na falta que sente dele, Bess tanto reza para o
seu retorno que acaba sentindo-se culpada quando um acidente grave ocorre à
Jan: Ela acredita que foi Deus quem provocou o acidente a fim da atender seu
pedido de que ele voltasse para casa.
Tal acidente deixa Jan paraplégico, incapaz de
corresponder ao amor de Bess. E essa impossibilidade o leva a sugerir que ela
procure outros homens, entre as pessoas do vilarejo.
O rito de transar com eles, e depois lhe
relatar o acontecimento em detalhes é, para Jan, uma forma de ainda manter uma
espécie de vida sexual com Bess.
Todavia, essa atitude logo irá deteriorar a
vida da própria Bess, em parte pela insanidade intensa que dará lugar à sua
instabilidade emocional, em parte pelo modo pouco tolerante que os moradores do
lugar passarão a enxergar seu comportamento, mas, sobretudo, pelo perigo a que
ela vai se expor cada vez mais, quando procurar por parceiros mais e mais
improváveis –o quê levará Bess a um fatídico encontro num cargueiro.
Depois deste primoroso trabalho, Von Trier
envolveu-se no movimento do cinema dinamarquês chamado Dogma 95, realizando a
partir de suas diretrizes o árido “Os Idiotas”. E chegar a ser curioso, por
isso mesmo, que “Ondas do Destino” seja justamente um filme sobre o caminho
destrutivo a que paradigmas e diretrizes seguidos cegamente podem levar o ser
humano. Essa premissa –a de uma mulher bondosa cuja boa vontade a leva a se
esvair, física e emocionalmente, num mundo dominado pela crueldade –passou a
definir todo o seu trabalho cinematográfico desde então.
Em “Ondas do Destino” fica perceptível o quanto
essa postura deve, em inspiração artística e motivação reflexiva, ao clássico
“A Paixão de Joana D’ Arc”, de Carl T. Dreyer –a santidade, na visão sem
ressalvas nem concessões de Von Trier, pode se expressar no mundo cão em que
vivemos, desde que tenhamos estômago forte para acompanhar esses percalços.
Se os filmes subseqüentes
foram ficando cada vez mais conceituais e inclinados a uma vontade
desnecessária de chocar, ao menos este daqui supera essas características já
presentes para se firmar como uma das melhores obras dos anos 1990.
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