terça-feira, 2 de maio de 2017

Ondas do Destino

Pode-se estabelecer uma comparação, no que diz respeito a processos criativos, a realizadores que praticamente não têm coisa alguma em comum. Isso fica perceptível quando observo um dos primeiros filmes de maior expressão do famigerado Lars Von Trier, “Ondas do Destino”, lançado em 1995.
Não existe qualquer identificação entre ele e o diretor-roteirista Cameron Crowe (do maravilhoso “Quase Famosos”), mas entre eles existe uma quase similaridade: Assim como Crowe, Lars Von Trier saiu muito melhor nos filmes em que sua auto-censura o inibiu a fim de moldar um trabalho mais austero.
E nesse sentido, “Ondas do Destino” é, seguramente, seu melhor trabalho.
Foi também o filme que estabeleceu o cinema que Von Trier faria dali por diante: Se obras anteriores como “Europa”, “Elemento do Crime” e “O Reino” lançavam mão de subterfúgios fantasiosos e até sobrenaturais, a partir deste filme, Von Trier –com raras exceções –passou a se debruçar sobre a realidade nua e crua e, em especial, a um tema que foi se tornando cada vez mais caro à sua filmografia, o sexo.
Dividido por capítulos (anunciados em irônicos intertítulos), como é do agrado de seu diretor, “Ondas do Destino” acompanha a história de Bess (Emily Watson, absolutamente brilhante) que vive numa intransigente comunidade religiosa nas ilhas Hébridas Exteriores. Para a perplexidade de seus familiares, que temem por sua segurança já que Bess sofre de alguns distúrbios psicológicos, ela se apaixona por Jan (Stellan Skarsgaard), um rapaz sueco que trabalha em uma plataforma petrolífera no Mar do Norte.
Eles se casam, e iniciam um relacionamento feliz, perturbado apenas pelos ocasionais períodos em que Jan tem de afastar-se de Bess para trabalhar, quando ela é assolada por uma irreprimível tristeza.
Na falta que sente dele, Bess tanto reza para o seu retorno que acaba sentindo-se culpada quando um acidente grave ocorre à Jan: Ela acredita que foi Deus quem provocou o acidente a fim da atender seu pedido de que ele voltasse para casa.
Tal acidente deixa Jan paraplégico, incapaz de corresponder ao amor de Bess. E essa impossibilidade o leva a sugerir que ela procure outros homens, entre as pessoas do vilarejo.
O rito de transar com eles, e depois lhe relatar o acontecimento em detalhes é, para Jan, uma forma de ainda manter uma espécie de vida sexual com Bess.
Todavia, essa atitude logo irá deteriorar a vida da própria Bess, em parte pela insanidade intensa que dará lugar à sua instabilidade emocional, em parte pelo modo pouco tolerante que os moradores do lugar passarão a enxergar seu comportamento, mas, sobretudo, pelo perigo a que ela vai se expor cada vez mais, quando procurar por parceiros mais e mais improváveis –o quê levará Bess a um fatídico encontro num cargueiro.
Depois deste primoroso trabalho, Von Trier envolveu-se no movimento do cinema dinamarquês chamado Dogma 95, realizando a partir de suas diretrizes o árido “Os Idiotas”. E chegar a ser curioso, por isso mesmo, que “Ondas do Destino” seja justamente um filme sobre o caminho destrutivo a que paradigmas e diretrizes seguidos cegamente podem levar o ser humano. Essa premissa –a de uma mulher bondosa cuja boa vontade a leva a se esvair, física e emocionalmente, num mundo dominado pela crueldade –passou a definir todo o seu trabalho cinematográfico desde então.
Em “Ondas do Destino” fica perceptível o quanto essa postura deve, em inspiração artística e motivação reflexiva, ao clássico “A Paixão de Joana D’ Arc”, de Carl T. Dreyer –a santidade, na visão sem ressalvas nem concessões de Von Trier, pode se expressar no mundo cão em que vivemos, desde que tenhamos estômago forte para acompanhar esses percalços.
Se os filmes subseqüentes foram ficando cada vez mais conceituais e inclinados a uma vontade desnecessária de chocar, ao menos este daqui supera essas características já presentes para se firmar como uma das melhores obras dos anos 1990.

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