segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O Cheiro do Ralo

“Esse cheiro que você está sentindo é do ralo...”
Ainda que ostente, durante o filme todo, uma indiferença quase traduzida em desprezo para com a opinião alheia, Lourenço (Selton Mello, genial) não consegue suportar a idéia dos outros pensarem que é ele quem fede e não o ralo entupido de seu escritório de antiguidades.
Em sua rotina de comprar ou não as quinquilharias e parafernálias que as pessoas oferecem em sua loja, Lourenço estabelece uma espécie de jogo impiedoso: Não importa a ele negociar o valor afetivo que o item possui para a pessoa –nesse sentido, sua avaliação é cruel e insensível. Pior: Conforme seu humor do dia ou sua primeira impressão a respeito do portador de determinado objeto a reação de Lourenço pode ser francamente rude.
Negociar sistematicamente esses itens (e o filme em si é quase todo constituído de intermináveis gags, ora divertidas, ora tragicômicas, que se formam por meio dessa sucessão) o tornam tão tremendamente desprovido de tato e de empatia que, não tarda, Lourenço está também negociando a própria condição humanamente digna daquelas pessoas –como a jovem certamente viciada (Silvia Lourenço) que ele induz a fazer um striptease; o homem a quem ele pergunta quais seriam os limites do aceitável para ele; a mulher casada (Lorena Lobato) de quem ele extrai um pequeno show erótico; o rapaz (Pedro Vicente) que ele recusa só para vê-lo voltar para casa carregando os livros pesados, e muitos outros casos.
Se há algo que se interpõe (ou não) nesse ciclo vicioso é a ‘Bunda’, ou melhor dizendo, a garçonete (cuja pronúncia do nome ele sequer presta atenção) interpretada pela bela Paula Braun, dona de um traseiro bem formado pelo qual Lourenço se apaixona.
Ele vai cortejá-la (não visando um relacionamento, mas, disposto a “comprá-la”, como ele mesmo diz) na lanchonete de quinta categoria onde ela trabalha, o quê o obriga a comer a péssima comida de lá. A comida vai para o vaso sanitário do escritório contribuindo ainda mais para o fedor que emana do ralo e que, dia a dia, vai sabotando o já instável equilíbrio de Lourenço. Isso se reflete em sua incapacidade de tolerar a noiva (Fabiana Guglielmetti), terminando com o relacionamento quando “os convites do casamento já estavam na gráfica!”, e na imensa carência de uma figura paterna, expressada no bizarro esforço de colecionar partes que seriam dele: Um olho vendido a preço de ouro por um desconhecido; uma prótese de perna comprada pouco depois.
O quê o diretor Heitor Dhalia, adaptando o livro de Lourenço Mutarelli, registra assim é a deterioração ética de um ser humano por meio das interferências externas, assim como fez –guardadas as devidas proporções –Paul Anderson em “Sangue Negro”, ainda que num tom e num gênero completamente diferente.
Os grandes responsáveis pelo resultado notavelmente objetivo e afiado que ele consegue aqui são certamente o esmero da equipe técnica (a fotografia e a cenografia são tão econômicas quanto minimalistas fazendo lembrar o início de carreira dos Coen ou de Wes Anderson) e do elenco (composto quase que em sua totalidade de nomes desconhecidos e, por isso mesmo, inspirados e compenetrados no projeto), e a atuação comprometida e brilhante de Selton Mello, onde ele faz um resgate respeitoso e reverente dos trejeitos e maneirismos peculiares do grande Paulo César Pereio (que participa deste filme como a voz inconformada do pai da noiva ao telefone).
Para uns uma comédia ácida, para outros um drama amargo, para mim um filme sensacional.

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