“Esse cheiro que você está sentindo é do
ralo...”
Ainda que ostente, durante o filme todo, uma
indiferença quase traduzida em desprezo para com a opinião alheia, Lourenço
(Selton Mello, genial) não consegue suportar a idéia dos outros pensarem que é
ele quem fede e não o ralo entupido de seu escritório de antiguidades.
Em sua rotina de comprar ou não as
quinquilharias e parafernálias que as pessoas oferecem em sua loja, Lourenço
estabelece uma espécie de jogo impiedoso: Não importa a ele negociar o valor
afetivo que o item possui para a pessoa –nesse sentido, sua avaliação é cruel e
insensível. Pior: Conforme seu humor do dia ou sua primeira impressão a
respeito do portador de determinado objeto a reação de Lourenço pode ser
francamente rude.
Negociar sistematicamente esses itens (e o
filme em si é quase todo constituído de intermináveis gags, ora divertidas, ora
tragicômicas, que se formam por meio dessa sucessão) o tornam tão tremendamente
desprovido de tato e de empatia que, não tarda, Lourenço está também negociando
a própria condição humanamente digna daquelas pessoas –como a jovem certamente
viciada (Silvia Lourenço) que ele induz a fazer um striptease; o homem a quem
ele pergunta quais seriam os limites do aceitável para ele; a mulher casada
(Lorena Lobato) de quem ele extrai um pequeno show erótico; o rapaz (Pedro
Vicente) que ele recusa só para vê-lo voltar para casa carregando os livros pesados, e muitos outros casos.
Se há algo que se interpõe (ou não) nesse ciclo
vicioso é a ‘Bunda’, ou melhor dizendo, a garçonete (cuja pronúncia do nome ele
sequer presta atenção) interpretada pela bela Paula Braun, dona de um traseiro
bem formado pelo qual Lourenço se apaixona.
Ele vai cortejá-la (não visando um
relacionamento, mas, disposto a “comprá-la”, como ele mesmo diz) na lanchonete
de quinta categoria onde ela trabalha, o quê o obriga a comer a péssima comida
de lá. A comida vai para o vaso sanitário do escritório contribuindo ainda mais
para o fedor que emana do ralo e que, dia a dia, vai sabotando o já instável
equilíbrio de Lourenço. Isso se reflete em sua incapacidade de tolerar a noiva
(Fabiana Guglielmetti), terminando com o relacionamento quando “os convites do
casamento já estavam na gráfica!”, e na imensa carência de uma figura paterna,
expressada no bizarro esforço de colecionar partes que seriam dele: Um olho
vendido a preço de ouro por um desconhecido; uma prótese de perna comprada
pouco depois.
O quê o diretor Heitor Dhalia, adaptando o
livro de Lourenço Mutarelli, registra assim é a deterioração ética de um ser
humano por meio das interferências externas, assim como fez –guardadas as
devidas proporções –Paul Anderson em “Sangue Negro”, ainda que num tom e num
gênero completamente diferente.
Os grandes responsáveis pelo resultado
notavelmente objetivo e afiado que ele consegue aqui são certamente o esmero da
equipe técnica (a fotografia e a cenografia são tão econômicas quanto
minimalistas fazendo lembrar o início de carreira dos Coen ou de Wes Anderson)
e do elenco (composto quase que em sua totalidade de nomes desconhecidos e, por
isso mesmo, inspirados e compenetrados no projeto), e a atuação comprometida e
brilhante de Selton Mello, onde ele faz um resgate respeitoso e reverente dos
trejeitos e maneirismos peculiares do grande Paulo César Pereio (que participa
deste filme como a voz inconformada do pai da noiva ao telefone).
Para uns uma comédia ácida,
para outros um drama amargo, para mim um filme sensacional.
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