segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O Rio das Almas Perdidas

Eis um belo exemplo do potencial, muito pouco aproveitado, que a estrela Marilyn Monroe possuía como atriz capaz de fazer trabalhos distintos das loiras ingênuas e insinuantes às quais ela foi, para sempre, associada, dentro e fora das telas.
No papel da cantora Kay, ela está deslumbrante como sempre, versátil como nunca.
Já no início do filme, ela encara com desenvoltura dois surpreendentes números musicais, inclusive pelo fato dela ter cantado e tocado violão em cena de verdade.
Na segunda metade do Século XIX, as regiões entre a fronteira dos EUA e do Canadá são palco para a obstinada corrida do ouro que atrai aventureiros e cria cidades instantâneas como essa onde ela se encontra ganhando a vida entretendo marmanjos com suas canções.
Além de Kay, lá está também Matt Calder, o inicialmente misterioso personagem de Robert Mitchum. Calder quer sossego e, portanto, distância de todas as atribulações que envolve a busca por ouro, e nisso, ele está coberto de razão: Aos poucos, a narrativa sempre charmosa e calibrada à perfeição de ritmo de Otto Preminger (uma incrível característica de seus filmes) irá revelar os reais motivos de Calder, assim como seu discutível passado.
Agora um rancheiro, após uns bons anos perdidos pagando por um crime, Calder só está nessa cidadezinha porque o filho que até então não conhecia, Mark (o garotinho Tommy Rettig), está prestes a encontrá-lo.
A intenção de Calder é viver na fazenda plantando trigo, longe de confusões.
Entretanto, como cabe aos protagonistas de aventuras nesses moldes, as confusões irão até ele: Um belo dia, nas margens do rio que corre ao lado de sua morada, Calder e o filho salvam a jangada de Kay e de seu namorado, Harry Weston (Rory Calhoun). O objetivo do casal era descer as corredeiras até Council City, onde Harry reclamará a posse de uma mina de ouro.
Ao abrigar o casal em sua casa, Calder tem seu rifle e seu cavalo roubado por Weston –que alega precisar deles para chegar o quanto antes à Council City –e é deixado, ao lado de Kay e do próprio filho, desprotegido de eventuais ataques de índios hostis.
Desejoso de vingança (e tão logo sua casa é incendiada pelos nativos), Calder pega a jangada e planeja descer o rio para encontrar Weston e vingar-se, mesmo que à tiracolo esteja levando Kay, que ocasionalmente se desdobra em argumentos pretensamente plausíveis para defender o namorado.
O filme de Preminger não faz muitos rodeios e alterna sua narrativa em duas facetas distintas: Numa, ele registra com propriedade e perícia técnica o embate dos três protagonistas contra o rio selvagem que lhes representa um poderoso obstáculo –reza a lenda que Mitchum e Marilyn quase se afogaram em algumas cenas devido à autenticidade exigida pelo diretor –na outra, ele observa a dinâmica ambígua e curiosa que surge entre os personagens: Kay é o elemento desestabilizador que perturba a harmonia recente construída entre pai e filho (ela conhece o passado de Calder e será responsável direto para que Mark tome conhecimento dele), ao mesmo tempo em que preenche com encantadora naturalidade o papel de figura materna para Mark e o de interesse amoroso para Calder (ainda que o diretor Preminger seja um bocado econômico no que tange ao romance, por mais que a química entre Marilyn e Mitchum seja real e imediata).
Essa objetividade na condução faz o filme passar como uma brisa: Logo, estamos ao lado dos personagens em Council City onde Calder almeja encontrar Weston –ainda que Preminger também não manifeste interesse em fazer desta uma história de vingança; inerente à sua natureza como contador de histórias é sua postura como observador moral das propensões civilizadas do homem. Seu protagonista, Calder, se nega a agir como um homem típico do faroeste (embora este grande filme seja um) encarando um duelo inconseqüente; é seu próprio filho quem, em defesa do pai, fulmina Weston com um tiro.
Na seqüência final, Kay –à essa altura, já ciente do caráter inescrupuloso de Weston e bastante afetada por Calder –se recolhe em resignação para voltar a cantar em um bar (e aí somos brindados com um dos mais encantadores números musicais dela, ao som da bela e melancólica “River Of No Return”), no que aparenta ser um desfecho niilista (e até bastante interessante) de Preminger que quase engana o expectador. Nada disso: Calder volta nos últimos segundos do filme para arrebatar Kay da presença daqueles bêbados e levá-la com ele.
Nem é tanto uma concessão à um final feliz hollywoodiano, é lógica: Que homem, em sua sã consciência, deixaria Marilyn Monroe escapar? 

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