“F for Fake” é um trabalho desafiador de Orson
Welles no qual o consagrado realizador de “Cidadão Kane” contrapõe as
propriedades charmosas do embuste à qualidade autêntica do real.
É um documentário fugidio, escorregadio,
indeciso, manhoso, indulgente e tão complicado em sua forma quanto o é em seu
conteúdo –características que parecem deliberadamente afastá-lo da própria
concepção de um documentário.
Na narração eloqüente, descontraída e empática
do próprio Welles –que não se furta em aparecer constantemente em cena como um
mestre de cerimônias –nos são apresentados dois personagens que dominarão o
filme (além de uma terceira, a atriz Oja Korda, cuja importância se revelará
nos vinte minutos finais), são eles os falsários Elmyr de Hory e seu biógrafo Clifford
Irving. A história que os une é, do início ao fim, carregada das indefinições
típicas de um grande mentiroso: Fala sobre mentiras tomadas por verdade e
verdades tomadas por mentira, e não raro confunde propositadamente a narrativa
desmentindo com freqüência algum relato anterior.
O próprio Orson Welles, talvez, contaminado
pela astuciosa malandragem de seus personagens assume, aqui, a autoria de um
filme que jamais se conforma em um rótulo, em um formato ou em um estilo que
possa defini-lo como um todo: Ele passeia com oscilação intermitente entre o
documental e o fictício, entre o registro galhardamente empático aos
protagonistas e o esforço da imparcialidade.
Elmy de Hory foi, afinal, um falsificador. Mas,
um falsificador tão talentoso que era impossível discernir a veracidade de suas
obras e dos autores que ele buscava simular. Sua vida foi recriar com sucesso
Matisse, Modigliani, Picasso e muitos outros.
Mais do que isso, na excelência de sua farsa,
Elmyr abriu um amplo espaço para o questionamento do chamado “expertisse”
–afinal, o quê são os especialistas que ganham com sua especialidade, se a sua
distinção pode ser enganada como a de uma pessoa normal?
Além dessa questão, Elmyr também parece levar
Welles à perguntar: O valor da arte em si pode ser atrelado apenas a um nome
conhecido, mesmo que um anônimo venha a exercê-la com excelência?
São questões com as quais Welles parece
exultante em confrontar o expectador enquanto sequer dá tempo para que as
informações sejam absorvidas; numa montagem vertiginosa (e certamente
vanguardista para a época em que foi feito, os anos 1970), ele pula de um
segmento ao outro, seja uma reportagem, um flagrante documental, uma encenação
ou uma mera colagem de cenas, e assim, de Elmy, ele vai para Cliffor Irving,
que o conheceu quando escrevia um livro sobre suas pinturas falsificadas, mas
ficou, o próprio Irving, famoso por um episódio onde teria se encontrado com o
excêntrico e recluso milionário Howard Hugues e dali tirado material para
escrever todo um livro sobre ele.
A autenticidade da afirmação de Irving jamais
pode ser comprovada –Hugues teria dado uma declaração desmentindo-o, mas, sendo
Hugues a figura enigmática que era, tal declaração jamais teve como ser, também
ela, comprovada (!).
Ou sua farsa era tão bem calibrada que não
abria margem para a elucidação, ou a elucidação de sua história era tão
espantosamente enevoada que abria possibilidades para a farsa –de qualquer
modo, a ocasião ainda permite à Welles fazer ao público uma curiosa revelação:
Quando realizou seu clássico maior, “Cidadão Kane”, uma biografia disfarçada do
magnata Randolph Hearts, Welles chegou a pensar a fazer, em vez dele, uma
biografia disfarçada do próprio Howard Hugues!
Na sua condição de cineasta
autoral há anos negligenciado por Hollywood (este foi seu último trabalho
concluído em meio a inúmeros projetos inacabados), Welles exala uma
irreprimível simpatia por seus protagonistas, e parece experimentar sádica
satisfação em não fornecer quaisquer conclusões acerca da dissertação artística
que sua obra levanta.
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