segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Verdades e Mentiras

“F for Fake” é um trabalho desafiador de Orson Welles no qual o consagrado realizador de “Cidadão Kane” contrapõe as propriedades charmosas do embuste à qualidade autêntica do real.
É um documentário fugidio, escorregadio, indeciso, manhoso, indulgente e tão complicado em sua forma quanto o é em seu conteúdo –características que parecem deliberadamente afastá-lo da própria concepção de um documentário.
Na narração eloqüente, descontraída e empática do próprio Welles –que não se furta em aparecer constantemente em cena como um mestre de cerimônias –nos são apresentados dois personagens que dominarão o filme (além de uma terceira, a atriz Oja Korda, cuja importância se revelará nos vinte minutos finais), são eles os falsários Elmyr de Hory e seu biógrafo Clifford Irving. A história que os une é, do início ao fim, carregada das indefinições típicas de um grande mentiroso: Fala sobre mentiras tomadas por verdade e verdades tomadas por mentira, e não raro confunde propositadamente a narrativa desmentindo com freqüência algum relato anterior.
O próprio Orson Welles, talvez, contaminado pela astuciosa malandragem de seus personagens assume, aqui, a autoria de um filme que jamais se conforma em um rótulo, em um formato ou em um estilo que possa defini-lo como um todo: Ele passeia com oscilação intermitente entre o documental e o fictício, entre o registro galhardamente empático aos protagonistas e o esforço da imparcialidade.
Elmy de Hory foi, afinal, um falsificador. Mas, um falsificador tão talentoso que era impossível discernir a veracidade de suas obras e dos autores que ele buscava simular. Sua vida foi recriar com sucesso Matisse, Modigliani, Picasso e muitos outros.
Mais do que isso, na excelência de sua farsa, Elmyr abriu um amplo espaço para o questionamento do chamado “expertisse” –afinal, o quê são os especialistas que ganham com sua especialidade, se a sua distinção pode ser enganada como a de uma pessoa normal?
Além dessa questão, Elmyr também parece levar Welles à perguntar: O valor da arte em si pode ser atrelado apenas a um nome conhecido, mesmo que um anônimo venha a exercê-la com excelência?
São questões com as quais Welles parece exultante em confrontar o expectador enquanto sequer dá tempo para que as informações sejam absorvidas; numa montagem vertiginosa (e certamente vanguardista para a época em que foi feito, os anos 1970), ele pula de um segmento ao outro, seja uma reportagem, um flagrante documental, uma encenação ou uma mera colagem de cenas, e assim, de Elmy, ele vai para Cliffor Irving, que o conheceu quando escrevia um livro sobre suas pinturas falsificadas, mas ficou, o próprio Irving, famoso por um episódio onde teria se encontrado com o excêntrico e recluso milionário Howard Hugues e dali tirado material para escrever todo um livro sobre ele.
A autenticidade da afirmação de Irving jamais pode ser comprovada –Hugues teria dado uma declaração desmentindo-o, mas, sendo Hugues a figura enigmática que era, tal declaração jamais teve como ser, também ela, comprovada (!).
Ou sua farsa era tão bem calibrada que não abria margem para a elucidação, ou a elucidação de sua história era tão espantosamente enevoada que abria possibilidades para a farsa –de qualquer modo, a ocasião ainda permite à Welles fazer ao público uma curiosa revelação: Quando realizou seu clássico maior, “Cidadão Kane”, uma biografia disfarçada do magnata Randolph Hearts, Welles chegou a pensar a fazer, em vez dele, uma biografia disfarçada do próprio Howard Hugues!
Na sua condição de cineasta autoral há anos negligenciado por Hollywood (este foi seu último trabalho concluído em meio a inúmeros projetos inacabados), Welles exala uma irreprimível simpatia por seus protagonistas, e parece experimentar sádica satisfação em não fornecer quaisquer conclusões acerca da dissertação artística que sua obra levanta.

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