terça-feira, 24 de outubro de 2017

Amores Expressos

Como o autor que é, o diretor Wong Kar Wai constrói seus filmes através de uma percepção atenta a todos os desvios de percurso, permitindo que suas obras sejam assim concretizadas a partir de uma convulsão orgânica de idéias que se atualizam a cada hora de realização. Trabalhos como “Amor À Flor da Pele” e “2046-Os Segredos do Amor” são filmes feitos a partir de uma constante alimentação do improviso, ao sabor de seus próprios contratempos.
No cult “Amores Expressos” temos um dos mais claros e palpáveis exemplares dessa técnica, onde ele se dá o luxo de narras duas histórias que se conectam de modo quase aleatória sem preâmbulos ou intertítulos a determiná-las.
Na primeira, o policial 223 (o simpático Takeshi Kaneshiro) amarga o fora deixado por May –sua ex-namorada que nunca aparace –através de um ritual estranho de expiação: Alimenta-se insistentemente do conteúdo de latinhas de abaxi em conservas (detalhe –todas têm a data de validade de 1º de maio!). Na sua concepção, é a forma de suprir a falta que seu organismo sente dela, antes que, por fim, a alma se recupere da rejeição. Na lanchonete que freqüenta, 223 recebe a sugestão do proprietário para que cure a dor de um amor com outro; e a jovem empregada do lugar, também ela chamada May –e que também nunca aparece –está disponível!
Mas, o fato de ambas ter o mesmo nome é, para o supersticioso 223, um sinal de problema. Sinal este que ele ignora quando resolve tentar a sorte com a personagem tão artificial quanto atraente da bela Brigitte Lin –uma autêntica femme fatale que ele decide cortejar quando entra no mesmo bar onde enchia a cara.
Na segunda história, que ganha muito mais tempo de duração, Kar Wai reaproveita personagens que passaram brevemente na história anterior, como o proprietário da lanchonete e seus empregados, e deles faz o eixo em torno do qual a trama circula.
O policial 633 frequenta essa mesma lanchonete onde encontra a jovem e descontraída atendente Faye (Faye Wong, a andróide de "2046-Os Segredos do Amor"). Sem encontrar uma forma de estabelecer uma interação mais íntima com ele, Faye se aproveita de ocasionais circunstâncias (a ex-namorada aeromoça deixou na lanchonete a chave do apartamento que intencionava lhe devolver) para entrar no apartamento dele e experimentar a sensação que absorver as impressões de sua vida pessoal quando este se encontra ausente. Aos poucos, Faye cede ao gracejo furtivo de mudar algumas coisas de lugar, e alterar pequenos detalhes da privacidade dele, transformando aquilo num hábito, uma quase obsessão.
Nesse inusitado exercício de estilo. Kar Wai parece experimentar diversas formas de encenação e representação a medida que paulatinamente dispensa clichês do gênero –a ele não interessam momentos convencionais do romantismo como cenas em que os personagens enamorados se beijam ou algo assim: Sua visão do romance é tão moderna quanto iconoclasta e, a partir dessa postura, Kar Wai flerta com seqüências que desafiam os limites testados da edição, da velocidade de filmagem, dos filtros de luz da câmera e do uso imodesto da trilha sonora.

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