Como o autor que é, o diretor Wong Kar Wai constrói
seus filmes através de uma percepção atenta a todos os desvios de percurso,
permitindo que suas obras sejam assim concretizadas a partir de uma convulsão
orgânica de idéias que se atualizam a cada hora de realização. Trabalhos como
“Amor À Flor da Pele” e “2046-Os Segredos do Amor” são filmes feitos a partir
de uma constante alimentação do improviso, ao sabor de seus próprios
contratempos.
No cult “Amores Expressos” temos um dos mais
claros e palpáveis exemplares dessa técnica, onde ele se dá o luxo de narras
duas histórias que se conectam de modo quase aleatória sem preâmbulos ou
intertítulos a determiná-las.
Na primeira, o policial 223 (o simpático
Takeshi Kaneshiro) amarga o fora deixado por May –sua ex-namorada que nunca
aparace –através de um ritual estranho de expiação: Alimenta-se insistentemente
do conteúdo de latinhas de abaxi em conservas (detalhe –todas têm a data de
validade de 1º de maio!). Na sua concepção, é a forma de suprir a falta que seu
organismo sente dela, antes que, por fim, a alma se recupere da rejeição. Na
lanchonete que freqüenta, 223 recebe a sugestão do proprietário para que cure a
dor de um amor com outro; e a jovem empregada do lugar, também ela chamada May
–e que também nunca aparece –está disponível!
Mas, o fato de ambas ter o mesmo nome é, para o
supersticioso 223, um sinal de problema. Sinal este que ele ignora quando
resolve tentar a sorte com a personagem tão artificial quanto atraente da bela
Brigitte Lin –uma autêntica femme fatale que ele decide cortejar quando entra
no mesmo bar onde enchia a cara.
Na segunda história, que ganha muito mais tempo
de duração, Kar Wai reaproveita personagens que passaram brevemente na história
anterior, como o proprietário da lanchonete e seus empregados, e deles faz o
eixo em torno do qual a trama circula.
O policial 633 frequenta essa mesma lanchonete
onde encontra a jovem e descontraída atendente Faye (Faye Wong, a andróide de "2046-Os Segredos do Amor"). Sem encontrar
uma forma de estabelecer uma interação mais íntima com ele, Faye se aproveita
de ocasionais circunstâncias (a ex-namorada aeromoça deixou na lanchonete a
chave do apartamento que intencionava lhe devolver) para entrar no apartamento
dele e experimentar a sensação que absorver as impressões de sua vida pessoal
quando este se encontra ausente. Aos poucos, Faye cede ao gracejo furtivo de
mudar algumas coisas de lugar, e alterar pequenos detalhes da privacidade dele,
transformando aquilo num hábito, uma quase obsessão.
Nesse inusitado exercício
de estilo. Kar Wai parece experimentar diversas formas de encenação e representação
a medida que paulatinamente dispensa clichês do gênero –a ele não interessam
momentos convencionais do romantismo como cenas em que os personagens
enamorados se beijam ou algo assim: Sua visão do romance é tão moderna quanto
iconoclasta e, a partir dessa postura, Kar Wai flerta com seqüências que
desafiam os limites testados da edição, da velocidade de filmagem, dos filtros
de luz da câmera e do uso imodesto da trilha sonora.
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