quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Anjos Caídos

Lançado em 1995, “Duo Luo Tian Shi” dialoga diretamente com o cultuado “Amores Expressos” simplesmente porque o plano inicial de Wong Kar Wai era contar três histórias ao invés das duas que acabaram constituindo o filme. A terceira adquiriu tanta automonia no processo criativo que terminou virando um outro filme; se as tramas românticas que integram “Amores Expressos” (que será muito mencionado nesta resenha) foram reduzidas à sua essência para serem enclapsuladas numa mesma obra, a trama que resultou em “Anjos Caídos” insistia em se ramificar.
Eram as inconsistências do processo criativo que Kar Wai tanto aprecia permitir que molde seu trabalho.
A história que tanto se mostrou incompatível com as demais, envolve assim um assassino de aluguel, Chi Ming (Leon Lai), cuja vida solitária e urbana obedece aqueles padrões que Kar Wai ama enfatizar –como todos os demais personagens deste filme, ele é uma criatura essencialmente noturna (a luz do dia praticamente inexiste na narrativa).
Chi Ming é um ser que abdicou do preenchimento, e aparenta gostar de um certo vazio em sua vida: Em sua narração em off, ele reitera o fato de que é feliz sem precisar tomar qualquer decisão –quem vive e quem morre (ou onde e quando morre) não cabe a ele escolher, somente executar. Ela tem uma sócia e agente (a charmosa Michelle Reis) que contribui no serviço gerenciando todas as combinações e –assim como a personagem de Faye Wong em “Amores Expressos” –organizando e administrando o apartamento de Chi Ming sempre quando ele se encontra ausente. Após anos trabalhando em conjunto, os dois, por isso mesmo, nunca se encontraram frente a frente. Esse detalhe intriga a ambos e, com o tempo, embora a curiosidade um pelo outro chegue a ser esmagadora, passa de certa forma a definir sua relação.
Em algum momento, outro personagem aparece, interpretado por Takeshi Kaneshiro –e junto com ele surge a dúvida, seria ele então o mesmo personagem que interpreta em “Amores Expressos”?
Kar Wai parece se esbaldar em preservar no expectador essa indagação. Ele se apresenta com o mesmo número que tinha naquele filme, 223, só que, desta vez, ele parece ser um ex-presidiário e não um policial. Ele afirma (sempre numa narração em off) que ficou mudo (!) graças a um abacaxi enlatado que comeu –e essa era um das obsessões do personagem em “Amores Expressos”.
O próprio Takeshi Kaneshiro dá ao personagem uma interpretação diferente, mais peralta e insana. Na falta absoluta do quê fazer, ele invade estabelecimentos à noite para, de madrugada, passar-se por proprietário: Ele atende transeuntes numa barbearia, oferece os serviços em um açougue, faz vendas em um carrinho de sorvete, e assim por diante.
Uma atividade tão estranha quanto ilícita, mas que ele afirma, o faz feliz.
Isso até que ele se cruza com uma jovem transtornada (a bela Charlie Yong), aparentemente deixada para trás pelo ex-namorado que a trocou por uma tal de Loira (um daqueles personagens fantasmas, ausentes na cena, porém, onipresentes na narrativa que Kar Wai tanto adora). Ele a ajuda a procurar pela Loira, e depois pelo próprio amado que a rejeitou, oferecendo quase sempre seu ombro para ela chorar –e, nesse processo, a vulnerabilidade dela faz com que ele se apaixone, embora fique sempre claro que ele nada significa para ela.
Há uma outra Loira no filme, diga-se, e é a tresloucada jovem com que Chi Ming se encontra quando, na segunda metade do filme ele tem a epifânia de se aposentar da vida de matador de aluguel, o quê afeta não apenas a sua vida mais a de sua agente também.
Na comparação com seu projeto genitor, “Amores Expressos”, “Anjos Caídos” é assim menos um filme sobre romance e mais sobre relacionamentos, explorando com mais sarcasmo um certo submundo idealizado que no outro filme Kar Wai só vislumbrou por meio das breves seqüências que incluíam Brigitte Lin; são abundantes neste filme os quartos apertados com paredes claustrofóbicas e sempre decoradas que Kar Wai faz ficarem tão charmosos. Ao contrário do que fez em “Amores Expressos”, ele usa aqui uma lente grande angular que ressalta ainda a sensação de aflição e confinamento que seus personagens sentem, mas não conseguem exprimir.
Seu estilo solto, extremamente característico soa menos austero aqui, impondo um caos deliberado –frequente mais nas cenas que envolvem Takeshi Kaneshiro –que chega a lembrar alguns momentos dos filmes de Andrzej Zulawski, por mais inesperada que possa ser essa comparação.

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