Lançado em 1995, “Duo Luo Tian Shi” dialoga
diretamente com o cultuado “Amores Expressos” simplesmente porque o plano
inicial de Wong Kar Wai era contar três histórias ao invés das duas que
acabaram constituindo o filme. A terceira adquiriu tanta automonia no processo
criativo que terminou virando um outro filme; se as tramas românticas que
integram “Amores Expressos” (que será muito mencionado nesta resenha) foram
reduzidas à sua essência para serem enclapsuladas numa mesma obra, a trama que
resultou em “Anjos Caídos” insistia em se ramificar.
Eram as inconsistências do processo criativo
que Kar Wai tanto aprecia permitir que molde seu trabalho.
A história que tanto se mostrou incompatível
com as demais, envolve assim um assassino de aluguel, Chi Ming (Leon Lai), cuja
vida solitária e urbana obedece aqueles padrões que Kar Wai ama enfatizar –como
todos os demais personagens deste filme, ele é uma criatura essencialmente
noturna (a luz do dia praticamente inexiste na narrativa).
Chi Ming é um ser que abdicou do preenchimento,
e aparenta gostar de um certo vazio em sua vida: Em sua narração em off, ele
reitera o fato de que é feliz sem precisar tomar qualquer decisão –quem vive e
quem morre (ou onde e quando morre) não cabe a ele escolher, somente executar.
Ela tem uma sócia e agente (a charmosa Michelle Reis) que contribui no serviço
gerenciando todas as combinações e –assim como a personagem de Faye Wong em
“Amores Expressos” –organizando e administrando o apartamento de Chi Ming
sempre quando ele se encontra ausente. Após anos trabalhando em conjunto, os dois,
por isso mesmo, nunca se encontraram frente a frente. Esse detalhe intriga a
ambos e, com o tempo, embora a curiosidade um pelo outro chegue a ser
esmagadora, passa de certa forma a definir sua relação.
Em algum momento, outro personagem aparece, interpretado
por Takeshi Kaneshiro –e junto com ele surge a dúvida, seria ele então o mesmo
personagem que interpreta em “Amores Expressos”?
Kar Wai parece se esbaldar em preservar no
expectador essa indagação. Ele se apresenta com o mesmo número que tinha naquele
filme, 223, só que, desta vez, ele parece ser um ex-presidiário e não um
policial. Ele afirma (sempre numa narração em off) que ficou mudo (!) graças a
um abacaxi enlatado que comeu –e essa era um das obsessões do personagem em
“Amores Expressos”.
O próprio Takeshi Kaneshiro dá ao personagem
uma interpretação diferente, mais peralta e insana. Na falta absoluta do quê
fazer, ele invade estabelecimentos à noite para, de madrugada, passar-se por
proprietário: Ele atende transeuntes numa barbearia, oferece os serviços em um
açougue, faz vendas em um carrinho de sorvete, e assim por diante.
Uma atividade tão estranha quanto ilícita, mas
que ele afirma, o faz feliz.
Isso até que ele se cruza com uma jovem
transtornada (a bela Charlie Yong), aparentemente deixada para trás pelo ex-namorado
que a trocou por uma tal de Loira (um daqueles personagens fantasmas, ausentes
na cena, porém, onipresentes na narrativa que Kar Wai tanto adora). Ele a ajuda
a procurar pela Loira, e depois pelo próprio amado que a rejeitou, oferecendo
quase sempre seu ombro para ela chorar –e, nesse processo, a vulnerabilidade
dela faz com que ele se apaixone, embora fique sempre claro que ele nada
significa para ela.
Há uma outra Loira no filme, diga-se, e é a
tresloucada jovem com que Chi Ming se encontra quando, na segunda metade do
filme ele tem a epifânia de se aposentar da vida de matador de aluguel, o quê
afeta não apenas a sua vida mais a de sua agente também.
Na comparação com seu projeto genitor, “Amores
Expressos”, “Anjos Caídos” é assim menos um filme sobre romance e mais sobre
relacionamentos, explorando com mais sarcasmo um certo submundo idealizado que
no outro filme Kar Wai só vislumbrou por meio das breves seqüências que
incluíam Brigitte Lin; são abundantes neste filme os quartos apertados com
paredes claustrofóbicas e sempre decoradas que Kar Wai faz ficarem tão
charmosos. Ao contrário do que fez em “Amores Expressos”, ele usa aqui uma
lente grande angular que ressalta ainda a sensação de aflição e confinamento
que seus personagens sentem, mas não conseguem exprimir.
Seu estilo solto,
extremamente característico soa menos austero aqui, impondo um caos deliberado
–frequente mais nas cenas que envolvem Takeshi Kaneshiro –que chega a lembrar
alguns momentos dos filmes de Andrzej Zulawski, por mais inesperada que possa
ser essa comparação.
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