Em 1994, o diretor Claude Chabrol decidiu
refilmar um roteiro inacabado de Henri Georges-Clouzot (hábil esteta de grandes
filmes franceses de suspense), no qual ele exercia sua verve meticulosa e
pungente para expor as fissuras de insanidade do ser humano –e a partir delas,
evoluir a loucura em níveis intoleráveis.
Clouzot teve um infarto e faleceu deixando a
obra incompleta. Chabrol, na década de 1990, resolveu assumi-la e dela fazer um
filme.
Na visão de Chabrol –cujo interesse como
contador de histórias se aproxima mais da angústia doméstica ocasionada pelo
adultério do que por subterfúgios de suspense –o enredo moldado por Clouzot é
antes de tudo uma oportunidade ao drama.
A cena que abre “Ciúme” captura seus protagonistas
antes da tortuosa jornada psicológica na qual sua intimidade os lançará. Paul
(François Cluzet, o tetraplégico de “Intocáveis”, aqui a cara do ator
sul-africano Shalto Copley) e Nelly (Emmanuelle Béart, talvez a mais linda
atriz francesa dos anos 1990) estão ainda na fase do flerte. Ele está
construindo um hotel almejando lucrar com o turismo. Ela vai com uma amiga
visitar a obra. Nota-se ali, nesse início onde tudo o quê constituirá o filme
(o hotel, o casamento) está em estágio embrionário, que Nelly é uma mulher de
uma beleza que facilmente se destaca –e o diretor Chabrol enfatiza isso nas
roupas que envolvem o esplêndido corpo de Emmanuelle.
As cenas que se seguem transcorrem em fade-out
saltando o período dos anos; Paul e Nelly casam, abrem o hotel, têm um filho, o
hotel prospera.
Com certa perversidade que provavelmente já
existia do roteiro de Clouzot, Chabrol registra em pormenores comprometidos
essa passagem do tempo em relação a tudo o mais, exceto numa coisa: A beleza de
Nelly jamais deixa de ser fulgurante.
É esse detalhe, fascinante aos olhos do
expectador, que será, para Paul, o gatilho para o seu tormento.
Surgem as primeiras desconfianças, nascidas de
indícios fortuitos que toda relação tem. Uma voz insiste em dizer à Paul que
ele já foi enganado; e passa então a procurar a prova.
Primeiro enchendo Nelly de perguntas que ela
distraidamente responde de maneira vaga. Depois, seguindo-a crédulo de que irá
flagrá-la com o amante que, em princípio, ele supõe ser um jovem mecânico que
freqüenta o hotel.
A tensão e o tom de ameaça que realmente estão
no roteiro de Clouzot pouco interessam à Chabrol –ele quer é saborear uma
atmosfera ambígua na qual sentimentos como o amor, a paranóia e a suspeita se
mostram onipresentes sem nunca serem de fato expressados, como numa espécie de
“Dom Casmurro” francês: A dúvida passa assim a corroer o próprio expectador
visto que todo o tormento se dá do ponto de vista de Paul –e Paul, como ficará
evidente inúmeras vezes, não é a mais confiável das fontes.
Nelly nega. Tenta chamar Paul à razão,
sobretudo, quando os surtos dele começam a afetar financeiramente a freqüência
de clientes no hotel. Paul acha que as reações plausíveis de Nelly são
dissimulações bem estudadas, logo, ele deduz que todos do hotel estão ajudando-a
a traí-lo pelas costas. As visões dela com outros homens –surgidas em
alucinações –o enlouquecem. E então, quando numa noite Paul aparentemente perde
o controle e sugestivamente parece estuprar Nelly, um médico os confronta na
manhã seguinte. Ele parece fazer as vezes de um mediador. Não acredita nem em
um, nem em outro: Estaria ele tentando ludibriar Paul?
Após aquela noite a promessa de que uma
ambulância com enfermeiros chegará no hotel paira no ar; eles irão para levar
Nelly (que, naquele ponto, já é considerada por Paul uma histérica
incontrolável) ou para levar Paul?
A longa noite custa a passar; este é o auge da
paranóia de Paul: Ele amarra Nelly à cama, lhe dá remédios para dormir, tranca
o quarto –e ainda assim é incapaz de sentir-se tranqüilizado.
E então vem a surpresa: A decisão, um tanto
corajosa e para o expectador até perturbadora, de não dar ao filme um final,
deixando-o inacabado da forma como Clouzot havia deixado.
A dúvida –que, por isso,
persiste para além do filme –é, portanto, o grande artifício desta tragédia.
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