sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo

Em 1994, o diretor Claude Chabrol decidiu refilmar um roteiro inacabado de Henri Georges-Clouzot (hábil esteta de grandes filmes franceses de suspense), no qual ele exercia sua verve meticulosa e pungente para expor as fissuras de insanidade do ser humano –e a partir delas, evoluir a loucura em níveis intoleráveis.
Clouzot teve um infarto e faleceu deixando a obra incompleta. Chabrol, na década de 1990, resolveu assumi-la e dela fazer um filme.
Na visão de Chabrol –cujo interesse como contador de histórias se aproxima mais da angústia doméstica ocasionada pelo adultério do que por subterfúgios de suspense –o enredo moldado por Clouzot é antes de tudo uma oportunidade ao drama.
A cena que abre “Ciúme” captura seus protagonistas antes da tortuosa jornada psicológica na qual sua intimidade os lançará. Paul (François Cluzet, o tetraplégico de “Intocáveis”, aqui a cara do ator sul-africano Shalto Copley) e Nelly (Emmanuelle Béart, talvez a mais linda atriz francesa dos anos 1990) estão ainda na fase do flerte. Ele está construindo um hotel almejando lucrar com o turismo. Ela vai com uma amiga visitar a obra. Nota-se ali, nesse início onde tudo o quê constituirá o filme (o hotel, o casamento) está em estágio embrionário, que Nelly é uma mulher de uma beleza que facilmente se destaca –e o diretor Chabrol enfatiza isso nas roupas que envolvem o esplêndido corpo de Emmanuelle.
As cenas que se seguem transcorrem em fade-out saltando o período dos anos; Paul e Nelly casam, abrem o hotel, têm um filho, o hotel prospera.
Com certa perversidade que provavelmente já existia do roteiro de Clouzot, Chabrol registra em pormenores comprometidos essa passagem do tempo em relação a tudo o mais, exceto numa coisa: A beleza de Nelly jamais deixa de ser fulgurante.
É esse detalhe, fascinante aos olhos do expectador, que será, para Paul, o gatilho para o seu tormento.
Surgem as primeiras desconfianças, nascidas de indícios fortuitos que toda relação tem. Uma voz insiste em dizer à Paul que ele já foi enganado; e passa então a procurar a prova.
Primeiro enchendo Nelly de perguntas que ela distraidamente responde de maneira vaga. Depois, seguindo-a crédulo de que irá flagrá-la com o amante que, em princípio, ele supõe ser um jovem mecânico que freqüenta o hotel.
A tensão e o tom de ameaça que realmente estão no roteiro de Clouzot pouco interessam à Chabrol –ele quer é saborear uma atmosfera ambígua na qual sentimentos como o amor, a paranóia e a suspeita se mostram onipresentes sem nunca serem de fato expressados, como numa espécie de “Dom Casmurro” francês: A dúvida passa assim a corroer o próprio expectador visto que todo o tormento se dá do ponto de vista de Paul –e Paul, como ficará evidente inúmeras vezes, não é a mais confiável das fontes.
Nelly nega. Tenta chamar Paul à razão, sobretudo, quando os surtos dele começam a afetar financeiramente a freqüência de clientes no hotel. Paul acha que as reações plausíveis de Nelly são dissimulações bem estudadas, logo, ele deduz que todos do hotel estão ajudando-a a traí-lo pelas costas. As visões dela com outros homens –surgidas em alucinações –o enlouquecem. E então, quando numa noite Paul aparentemente perde o controle e sugestivamente parece estuprar Nelly, um médico os confronta na manhã seguinte. Ele parece fazer as vezes de um mediador. Não acredita nem em um, nem em outro: Estaria ele tentando ludibriar Paul?
Após aquela noite a promessa de que uma ambulância com enfermeiros chegará no hotel paira no ar; eles irão para levar Nelly (que, naquele ponto, já é considerada por Paul uma histérica incontrolável) ou para levar Paul?
A longa noite custa a passar; este é o auge da paranóia de Paul: Ele amarra Nelly à cama, lhe dá remédios para dormir, tranca o quarto –e ainda assim é incapaz de sentir-se tranqüilizado.
E então vem a surpresa: A decisão, um tanto corajosa e para o expectador até perturbadora, de não dar ao filme um final, deixando-o inacabado da forma como Clouzot havia deixado.
A dúvida –que, por isso, persiste para além do filme –é, portanto, o grande artifício desta tragédia.

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