Não fosse este filme concebido por David Cronenberg,
ele dificilmente existiria: Só uma mente fervilhante, plena em contundência
criativa e despudor artístico para extrair um filme do livro de William S.
Burroughs tido por virtualmente infilmável!
E, de fato, não há em “The Naked Lunch” –“O
Almoço Nu” publicado aqui no Brasil com esse título, mas batizado nos cinemas
como “Mistérios e Paixões”... –uma linha narrativa à qual um roteiro possa ser
atrelado e dali gerar todo um filme com começo, meio e fim; as experimentações
narrativas de Burroughs são radicais demais para isso. Todavia, radicalismo
autoral é algo do qual Cronenberg entende e no qual ele se sente à vontade: Dessa
forma, ele captura a essência do livro sob o prisma da própria vida de
Burroughs (que interpretou um padre em “Drugstore Cowboy”, de Gus Van Sant) e
dali remove um conto sobre alienação, paranóia, insanidade e os mais tétricos
fantasmas da criação literária.
Bill Lee, o protagonista vivido com requinte e
critério por Peter Weller (o astro de “Robocop”, de Paul Verhoeven), é uma
variação ora catatônica, ora dissertativa do próprio Burroughs. Entre a
indiferença filosófica de seus amigos, também escritores frustrados, e a
mediocridade da própria existência, ele vai levando a vida trabalhando como
exterminador de baratas.
Desde o início percebemos que Bill Lee habita
um mundo absurdo em cores fortes que só
a mente de Cronenberg teria despudor em conceber. Um mundo travestido de
realidade, mas cujos pormenores de bizarrice se encontram nos cantos prontos
para por as garras de fora.
Joan (interpretada por Judy Davis, de “Barton
Fink-Delírios de Hollywood”), esposa de Bill, é viciada no pó inseticida que
ele usa no trabalho. Por conta disso, seu emprego está por um fio graças ao
desperdício de material.
Ele cede à insistência dela e experimenta o
inseticida. “Uma viagem kafkiana...” ela diz.
Deveras, a partir daí a realidade de Bill
parece começar a se fragmentar: Ele é levado para um interrogatório por
policiais instruídos por um inseto falante (ou não...) e consegue escapar
esmagando a criatura (!). mais tarde, em busca de um meio de desintoxicar a
esposa, ele apela aos serviços suspeitos de um médico cheio de segundas
intenções (ponta de Roy Scheider).
Em meio ao êxtase ilusório da droga, Bill sem
querer mata Joan (!): Eles estavam brincando de ‘Guilherme Tell’ quando Bill,
mirando um copo sobre a cabeça dela, deu-lhe um tiro na testa (!).
(Essa seqüência faz menção de um trágico e
notório episódio real da vida de William S. Burroughs. Um momento terrível que,
de certa maneira, determinou sua verve como escritor e que, neste filme de
Cronenberg, é retomado no epílogo e revisto com indisfarçável carga dramática)
Após esse incidente, Bill entra em contato com
Mugwunp, um ser viscoso e monstruoso que lhe despacha para a Interzone, um
local nebuloso aparentemente ambientado no Marrocos. Neste ponto, a narrativa
de Cronenberg já criou um amálgama doentio e alucinante entre a vida do próprio
Burroughs –ou pelo menos, seus momentos mais peculiares –e a narração
controvertida, desconcertante e desafiadora de “The Naked Lunch”, o livro.
Bill conhece o casal norte-americano Tom (Ian
Holm) e Joan Frost (Judy Davis, novamente), vagamente inspirados no casal Paul
e Jane Bowles –retratados em “O Céu Que Nos Protege” –e o janota suíço Yves
Cloquet (Julian Sands).
Ao lado desses personagens, ele embarca numa
jornada misteriosa de sexo, alucinação e mistérios ocultos.
O quê Cronenberg faz então é contrapor o
processo da escrita de “The Naked Lunch” –nascido dos surtos abissais da droga
–com o labirinto de insanidade metalingüística que teria envolvido a mente de
seu criador, e disso extrai um delírio ininterrupto constituído de
homossexualismo, bizarrices, uma certa misoginia e a obsessão de Cronenberg por
metamorfoses repugnantes materializadas em criaturas insetóides, fruto talvez
da deterioração mental do protagonista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário