segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Operação França

O grande problema de algumas produções que passaram à história como divisores de águas de seu tempo é que as futuras gerações, provavelmente, não irão conseguir enxergar neles a inovação que ostentaram em sua época, simplesmente porque as características pioneiras e meritórias de sua audácia foram assimiladas e repetidas por infindáveis outros filmes depois dele.
Tomemos “Operação França”, de William Friedkin, como exemplo.
Após pegar o cinema comercial norte-americano de assalto com uma revolução temática e estética na condução de um filme policial de ação –e conquistar 5 Oscars incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor –“Operação França” virou uma espécie de modelo a ser seguido, fazendo com que quarenta e tantos anos depois, ele se pareça muito com diversos filmes policiais realizados ao longo desse período: Até o próprio Friedkin tentou repetir sua bem ajustada fórmula com o eficaz “Viver e Morrer em Los Angeles”, nos anos 1980.
A abordagem de Friedkin –com lampejos audazes de elementos documentais, tendo ganhado pouco depois uma quase contraparte oriental na prodigiosa saga japonesa, “Os Documentos da Yakuza”, de Kinji Fukasaku –visava uma quase inversão de valores nos tópicos a que o público estava acostumado ver no gênero policial (ou em qualquer gênero): Uma distinção maniqueísta do bem e do mal, da lei e do crime.
Em “Operação França”, temos a cruzada obsessiva do policial Popeye Doyle (Gene Hackman, soberbo), detetive do departamento de narcóticos da Costa Leste, em Nova York, que leva a níveis pessoais a investigação para prender um metódico traficante de drogas francês (Fernando Rey, de vários filmes de Buñuel) que estabeleceu uma sofisticada conexão nos EUA para executar o seu tráfico.
Os dois antagonistas, Popeye Doyle e Alain Charnier, o traficante francês, recebem do roteiro e da direção, uma definição inesperada: Se o Popeye Doyle de Hackman é truculento e insensível –um exemplo pulsante do proletariado –o traficante de Fernando Rey exala suavidade e classe; nada nele soa como um vilão. Doyle não é um policial exemplar no sentido restrito do termo; com freqüência o vemos extravasar a linha do aceitável e nunca demonstrando tato; Charnier é educado, trata os aliados como amigos e nunca é visto cometendo atrocidades. Doyle chafurda no mundo cão que o diretor tão bem recria e, não raro, carrega Buddy Russo (Roy Scheider), seu grande amigo, para o fundo de suas obsessões; Charnier é refinado, freqüenta locais refinados, ostenta cultura. “Operação França” é, assim, um embate de duas figuras tão antagônicas e opostas quanto o são desafiadoras uma à outra; tal e qual no mais contemporâneo “Fogo Contra Fogo”, de Michael Mann, o filme não determina para qual dos dois o expectador deve torcer. É um eufemismo não muito sutil da luta de classes, sendo que o subúrbio depauperado e brutalizado é representado, na pessimista visão de Friedkin, pelo policial, enquanto que a elite corrupta e bem servida é representada por seu nêmesis –a criminalidade surge então como um fator apocalíptico inevitável trazendo a deterioração ao já combalido mundo urbano materializado na suja e cinzenta Nova York.
Prova dessa perda irreversível de valores acarretada pela barbárie é que, naquela que é a seqüência mais famosa do filme –a cena insana de uma perseguição de um carro à um metrô elevado montada então com um virtuosismo inédito no cinema –vemos, ao fim, não o bandido atirar pelas costas de seu inimigo, mas o próprio Popeye Doyle.
Duro, realista e memorável, o filme de Friedkin parece jogar algumas duras verdades para seu público valendo-se da poderosa reflexão propiciada pela ambigüidade. Quando o cerco em torno dos dois grandes adversários, Doyle e Charnier, aperta, contudo, o diretor Friedkin não teme levar essas caracterizações até as últimas conseqüências: Ele deixa de passar a mão na cabeça de Charnier, mostrando enfim que a imagem que ele passa é uma mera fachada: Na reação muito humana que ele e Doyle apresentam na palpitante seqüência final, somos obrigados a reconhecer que a lei e o crime não são conceitos relativos.
Mesmo que todo o resto o seja: “Operação França” se encerra num dos desfechos mais intrigantes, pessimistas e amargos do gênero.
Anos depois, como sugerido nesse final dúbio, “Operação França” ganhou uma continuação, desta vez dirigida por John Frankenheimer, mas o filme de William Friedkin já tinha estabelecido um patamar alto demais para que ela conseguisse igualar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário