O grande problema de algumas produções que
passaram à história como divisores de águas de seu tempo é que as futuras
gerações, provavelmente, não irão conseguir enxergar neles a inovação que
ostentaram em sua época, simplesmente porque as características pioneiras e
meritórias de sua audácia foram assimiladas e repetidas por infindáveis outros
filmes depois dele.
Tomemos “Operação França”, de William Friedkin,
como exemplo.
Após pegar o cinema comercial norte-americano
de assalto com uma revolução temática e estética na condução de um filme
policial de ação –e conquistar 5 Oscars incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor
–“Operação França” virou uma espécie de modelo a ser seguido, fazendo com que
quarenta e tantos anos depois, ele se pareça muito com diversos filmes
policiais realizados ao longo desse período: Até o próprio Friedkin tentou
repetir sua bem ajustada fórmula com o eficaz “Viver e Morrer em Los Angeles”,
nos anos 1980.
A abordagem de Friedkin –com lampejos audazes
de elementos documentais, tendo ganhado pouco depois uma quase contraparte
oriental na prodigiosa saga japonesa, “Os Documentos da Yakuza”, de Kinji
Fukasaku –visava uma quase inversão de valores nos tópicos a que o público
estava acostumado ver no gênero policial (ou em qualquer gênero): Uma distinção
maniqueísta do bem e do mal, da lei e do crime.
Em “Operação França”, temos a cruzada obsessiva
do policial Popeye Doyle (Gene Hackman, soberbo), detetive do departamento de
narcóticos da Costa Leste, em Nova York, que leva a níveis pessoais a
investigação para prender um metódico traficante de drogas francês (Fernando
Rey, de vários filmes de Buñuel) que estabeleceu uma sofisticada conexão nos
EUA para executar o seu tráfico.
Os dois antagonistas, Popeye Doyle e Alain
Charnier, o traficante francês, recebem do roteiro e da direção, uma definição
inesperada: Se o Popeye Doyle de Hackman é truculento e insensível –um exemplo
pulsante do proletariado –o traficante de Fernando Rey exala suavidade e
classe; nada nele soa como um vilão. Doyle não é um policial exemplar no
sentido restrito do termo; com freqüência o vemos extravasar a linha do
aceitável e nunca demonstrando tato; Charnier é educado, trata os aliados como
amigos e nunca é visto cometendo atrocidades. Doyle chafurda no mundo cão que o
diretor tão bem recria e, não raro, carrega Buddy Russo (Roy Scheider), seu
grande amigo, para o fundo de suas obsessões; Charnier é refinado, freqüenta
locais refinados, ostenta cultura. “Operação França” é, assim, um embate de
duas figuras tão antagônicas e opostas quanto o são desafiadoras uma à outra;
tal e qual no mais contemporâneo “Fogo Contra Fogo”, de Michael Mann, o filme
não determina para qual dos dois o expectador deve torcer. É um eufemismo não
muito sutil da luta de classes, sendo que o subúrbio depauperado e brutalizado
é representado, na pessimista visão de Friedkin, pelo policial, enquanto que a
elite corrupta e bem servida é representada por seu nêmesis –a criminalidade
surge então como um fator apocalíptico inevitável trazendo a deterioração ao já
combalido mundo urbano materializado na suja e cinzenta Nova York.
Prova dessa perda irreversível de valores
acarretada pela barbárie é que, naquela que é a seqüência mais famosa do filme
–a cena insana de uma perseguição de um carro à um metrô elevado montada então
com um virtuosismo inédito no cinema –vemos, ao fim, não o bandido atirar pelas
costas de seu inimigo, mas o próprio Popeye Doyle.
Duro, realista e memorável, o filme de Friedkin
parece jogar algumas duras verdades para seu público valendo-se da poderosa
reflexão propiciada pela ambigüidade. Quando o cerco em torno dos dois grandes
adversários, Doyle e Charnier, aperta, contudo, o diretor Friedkin não teme
levar essas caracterizações até as últimas conseqüências: Ele deixa de passar a
mão na cabeça de Charnier, mostrando enfim que a imagem que ele passa é uma
mera fachada: Na reação muito humana que ele e Doyle apresentam na palpitante
seqüência final, somos obrigados a reconhecer que a lei e o crime não são
conceitos relativos.
Mesmo que todo o resto o seja: “Operação
França” se encerra num dos desfechos mais intrigantes, pessimistas e amargos do
gênero.
Anos depois, como sugerido
nesse final dúbio, “Operação França” ganhou uma continuação, desta vez dirigida
por John Frankenheimer, mas o filme de William Friedkin já tinha estabelecido
um patamar alto demais para que ela conseguisse igualar.
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