segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Bingo - O Rei das Manhãs

A expressão “Destruiu a minha infância!” ganha um novo significado com este magistral trabalho de Daniel Rezende (montador de “Cidade de Deus”, “Tropa de Elite” e “Árvore da Vida”) na direção.
As cenas de Vladimir Brichta (absolutamente magnífico) caracterizado como o palhaço Bingo à beira do surto enquanto tenta apresentar um programa infantil dos anos 1980 rivalizando em caráter antológico com as seqüências de treinamento do B.O.P.E. em “Tropa de Elite”, ou com o giro em 360° em torno de Busca-Pé, com o tempo retrocedendo, de “Cidade de Deus”. Ou seja: Este filme já está entre as melhores obras do cinema nacional de todos os tempos!
Rezende dedica-se à uma biografia mal-disfarçada (deliberadamente mal-disfarçada) de Arlindo Barreto, ator de pornochanchada que, em meados da década de 1980, imaginou ganhar a sorte grande ao ser escolhido para personificar o palhaço Bozo nas manhãs diárias do SBT. No filme, Vladimir Brichta interpreta Augusto Mendes e sua trajetória segue exatamente esse lastro: Ao tentar um teste para uma novela, e obter assim um sustento artístico que fosse menos constrangedor aos olhos do filho pequeno do que os filmes eróticos que fazia, Augusto por acaso resolve entrar na fila para a seleção daquele que viverá Bingo, uma atração que o SBT (aqui, batizado de TVP) exportou dos EUA.
Talentoso, inspirado e com freqüência sub-aproveitado, Augusto coloca nesse teste todo seu ímpeto criativo inesperado e travesso, e acaba obtendo o papel que faz dele o astro principal do programa exibido todas as manhãs em cadeia nacional na segunda maior emissora do país. Entretanto, em sua boa-venturança há um doloroso paradoxo: Por contrato, ele era completamente impedido de ter sua identidade revelada tornando-o assim o mais famoso ator anônimo do país.
De início, a narrativa estupenda de Rezende explora os meandros solares da situação pairando brilhantemente em gêneros distintos como a comédia –até pegar os macetes para ser um bom palhaço, ele faz uma espécie de estágio com um palhaço de verdade (vivido pelo grande e saudoso Domingos Montagner) –e até mesmo um certo suspense –as estatísticas de audiência que não sobem são freqüentes ameaças ao seu ganha-pão, e ele precisa recorrer a um jogo de cintura singular para incrementar o show sob a severa vigilância de sua diretora (Leandra Leal, maravilhosa como sempre).
Todavia, como bem diz sua mãe, também ela uma atriz, vivida por Ana Lúcia Torre: “Algumas pessoas são como formigas, outras são como cigarras, nós somos como mariposas! Precisamos da luz!”
É terrível para Augusto alavancar com seu talento o programa da emissora ao primeiro lugar da audiência para não receber qualquer reconhecimento do público por isso. Até mesmo quando ganha o troféu de Melhor Apresentador do Ano, ele é obrigado a comparecer à premiação vestido e maquiado de Bingo –e, portanto, impossível de ser reconhecido por qualquer um (inclusive, os seguranças da própria festa) quando coloca trajes normais.
Da incapacidade em aceitar tal injustiça, Augusto vai tirar sua derrocada: Ela começa quando ele busca nas drogas e no sexo a plenitude que não encontra na ovação do público, e vai se alastrar, na forma de cada vez mais pesados efeitos colaterais, na relação negligente com seus entes queridos, o filho pequeno Gabriel (Cauã Martins), que tanto ama, e a mãe, de quem herdou tanto a veia artística quanto a necessidade do aplauso.
O filme de Rezende sinaliza então como uma justiça poética: Arlindo Barreto, aqui Augusto Mendes, pode ter padecido do injusto anonimato durante o irônico período de sua consagração, mas neste trabalho extraordinário –de uma contundência cinematográfica rara de se achar em qualquer produção do mundo –ele encontra sua redenção ao protagonizar a mais sensacional obra do cinema brasileiro nos últimos anos.

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