quarta-feira, 11 de abril de 2018

Os Gritos do Silêncio

Guardadas as devidas proporções, “Nessun Dorma” está para “Os Gritos do Silêncio” assim como “A Cavalgada das Valquírias” está para “Apocalypse Now”: Trechos de músicas clássicas que aclimatam uma determinada cena num filme que reflete sobre a guerra do Vietnam.
Todavia, apesar de seu tema, quanto mais nos aprofundamos nele, mais as diferenças tornam “Os Gritos...” improvável e injusto de ser comparado com a obra-prima de Francis Ford Coppola: “Gritos...” oferece uma visão algo política e humana sobre a condição do Vietnam, sobre as inacreditáveis agruras físicas, psicológicas e metafísicas experimentadas pelos vietnamitas, mais do que propriamente o conflito com os vietcongues.
Oriundo das fileiras de documentaristas –e, por isso mesmo, audaz em empregar um realismo detalhado em cada trabalho –o diretor Roland Joffé (que logo depois fez o magnífico “A Missão”) debruça-se sobre as experiências do jornalista Sydney Schanberg (Sam Waterson, indicado ao Oscar de Melhor Ator) que desembarca em Saigon ao lado de toda uma equipe jornalística disposta a investigar os meandros daquela guerra desigual. Seu guia –e, com o tempo, amigo –é Dith Pran (Haing S. Ngor, merecido vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante) que os conduz através de circunstâncias que, não raro, revelam-se ameaçadoras. Sob muitos aspectos, sua relação de extrema afinidade e compreensão com os indivíduos perigosos que ora surgem, ou até mesmo sua disposição em humilhar-se em troca da vida dos companheiros americanos, se mostra o fator que determina a sobrevivência de Sydney e de outros (entre os quais, o correspondente vivido por John Malkovich).
Conforme o tempo avança, a guerra do Camboja se intensifica, tornando a região um perigo para todos e, logo, quando a retirada americana do país se faz imprescindível, Sydney deve partir para os EUA, mas não sem antes garantir a segurança de Dith.
É quando o filme de Joffé se define em sua dramaturgia: Após o momento em que se perdem um do outro, Sydney e Dith buscaram assim se reencontrar; o primeiro, por meio de seus recursos como jornalista, perseguindo as pistas prováveis e improváveis do amigo ao longo dos anos, e o segundo, vivendo e testemunhando atrocidades inacreditáveis no Vietnam pós-guerra, retratado como um lugar onde a crença do Ano Zero fez de crianças as maiores divindades, convertendo os cidadãos comuns em escravos em potencial para o julgo implacável das forças milicianas armadas.
É desse cenário de absurdo perigo –ainda que calcado em acontecimentos reais –que “Os Gritos do Silêncio” extrai seus mais extraordinários momentos, quando flagra vez após outras, as formas como Dith escapa por um triz da morte certa; e saber que o próprio ator, Ngor, passou por revezes muito assimilares aos do personagem torna tudo ainda mais crível.
É em uma cena de aflição de Sydney, ao olhar os absurdos do Vietnam televisionados em casa, que toca a música “Nessun Dorma” –quando o filme de Joffé, nessa segunda metade, quase inverte a equação fazendo dele o coadjuvante e de Dith, o protagonista –mas, na aguardada cena do reencontro, o diretor emoldura o belo momento com a mais salutar das mensagens de paz tocando assim “Imagine”, de John Lennon.

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