Guardadas as devidas proporções, “Nessun Dorma”
está para “Os Gritos do Silêncio” assim como “A Cavalgada das Valquírias” está
para “Apocalypse Now”: Trechos de músicas clássicas que aclimatam uma
determinada cena num filme que reflete sobre a guerra do Vietnam.
Todavia, apesar de seu tema, quanto mais nos
aprofundamos nele, mais as diferenças tornam “Os Gritos...” improvável e
injusto de ser comparado com a obra-prima de Francis Ford Coppola: “Gritos...”
oferece uma visão algo política e humana sobre a condição do Vietnam, sobre as
inacreditáveis agruras físicas, psicológicas e metafísicas experimentadas pelos
vietnamitas, mais do que propriamente o conflito com os vietcongues.
Oriundo das fileiras de documentaristas –e, por
isso mesmo, audaz em empregar um realismo detalhado em cada trabalho –o diretor
Roland Joffé (que logo depois fez o magnífico “A Missão”) debruça-se sobre as
experiências do jornalista Sydney Schanberg (Sam Waterson, indicado ao Oscar de
Melhor Ator) que desembarca em Saigon ao lado de toda uma equipe jornalística
disposta a investigar os meandros daquela guerra desigual. Seu guia –e, com o
tempo, amigo –é Dith Pran (Haing S. Ngor, merecido vencedor do Oscar de Melhor
Ator Coadjuvante) que os conduz através de circunstâncias que, não raro,
revelam-se ameaçadoras. Sob muitos aspectos, sua relação de extrema afinidade e
compreensão com os indivíduos perigosos que ora surgem, ou até mesmo sua
disposição em humilhar-se em troca da vida dos companheiros americanos, se
mostra o fator que determina a sobrevivência de Sydney e de outros (entre os
quais, o correspondente vivido por John Malkovich).
Conforme o tempo avança, a guerra do Camboja se
intensifica, tornando a região um perigo para todos e, logo, quando a retirada
americana do país se faz imprescindível, Sydney deve partir para os EUA, mas
não sem antes garantir a segurança de Dith.
É quando o filme de Joffé se define em sua
dramaturgia: Após o momento em que se perdem um do outro, Sydney e Dith buscaram
assim se reencontrar; o primeiro, por meio de seus recursos como jornalista,
perseguindo as pistas prováveis e improváveis do amigo ao longo dos anos, e o
segundo, vivendo e testemunhando atrocidades inacreditáveis no Vietnam
pós-guerra, retratado como um lugar onde a crença do Ano Zero fez de crianças
as maiores divindades, convertendo os cidadãos comuns em escravos em potencial
para o julgo implacável das forças milicianas armadas.
É desse cenário de absurdo perigo –ainda que
calcado em acontecimentos reais –que “Os Gritos do Silêncio” extrai seus mais
extraordinários momentos, quando flagra vez após outras, as formas como Dith
escapa por um triz da morte certa; e saber que o próprio ator, Ngor, passou por
revezes muito assimilares aos do personagem torna tudo ainda mais crível.
É em uma cena de aflição de
Sydney, ao olhar os absurdos do Vietnam televisionados em casa, que toca a
música “Nessun Dorma” –quando o filme de Joffé, nessa segunda metade, quase
inverte a equação fazendo dele o coadjuvante e de Dith, o protagonista –mas, na
aguardada cena do reencontro, o diretor emoldura o belo momento com a mais
salutar das mensagens de paz tocando assim “Imagine”, de John Lennon.
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