segunda-feira, 23 de abril de 2018

Simão do Deserto

Uma produção como esta é inadvertidamente uma oportunidade para Luis Buñuel destilar seu deboche e seu sarcasmo para com os dogmas e as engrenagens de poder e manipulação que ele parece identificar na religião.
Buñuel o faz, contudo, com tal elegância e sutileza que somente os cristãos mais atentos irão se dar conta da maneira irônica com que ele observa os pormenores da crença.
Simão, o protagonista (vivido por Claudio Brook), é visto em penitência. Os fiéis que surgem para vê-lo no alto de uma coluna no deserto logo enaltecem seu sacrifício por ter passado ali inacreditáveis 6 anos, 6 semanas e 6 dias (666, o número da besta!).
Ovacionado pelos integrantes da romaria e certamente inspirado pelas demonstrações irrestritas de admiração, Simão passa para outra coluna em cima da qual almeja passar mais uma temporada.
Em sua crença, porém, Simão é cheio de bizarrices bastante humanas: Perde com freqüência a eloqüência em seus discursos, esquece o final das orações, reage com ignorância à enaltecimentos sofisticados que não compreende e, por vezes, parece não compreender muito as razões de seus seguidores –e, de um certo ponto, nem parece lembrar mais das razões que o levaram até ali.
A multidão de fiéis (que o enaltecem ou o deixam só ao sabor do momento) também é um registro carregado de detalhada sátira: Um dos humildes aldeões, com as mãos decepadas por acidente, lhe roga um milagre para que possa tê-las de volta para trabalhar.
O milagre acontece, mas a reação do homem, de seus familiares e de todos à volta é de displicência: Tão habituados estariam as pessoas comuns a testemunhar milagres durante os períodos registrados na Bíblia, supõe Buñuel, que sua atitude diante deles seria corriqueira.
Ao redor de Simão, outros pequenos desenlaces se sucedem: Um jovem padre de comportamento afeminado se estranha com a postura mundana de um anão –personagem este que retorna ocasionalmente à cena para ressaltar necessidades práticas à Simão; os demais padres debatem a virtude de Simão, ora com admirado reconhecimento, ora com tentativas vazias de justificá-la (uma alfinetada de Buñuel nos paradigmas da teologia); a própria mãe de Simão vive ali por perto testemunhando a soberba maluquice do filho.
Também o Diabo –materializado nas formas um tanto sedutoras de Silvia Pinal –exerce nele uma influência algo ingênua, um antagonismo previamente esperado, quase infantil.
Na decisão de jamais esconder os aspecto nada altivos e até patéticos de uma circunstância como a retratada ao longo do filme, “Simão do Deserto” é quase uma comédia sobre as intrincadas sutilezas da fé disfarçada de um filme rigorosamente simples: Durante toda sua enxuta duração, a obra de Buñuel se manterá nos detalhes quase inexistentes da estranha penitência de Simão sobre a coluna; exceto pelo fim –nele, o Diabo propõe a Simão vislumbrar o mundo moderno e ambos aparecem num clube de dança a testemunhar de uma mesa o alucinado comportamento em sociedade dos jovens. O Diabo decide se juntar a eles em sua euforia (lembre-se, ele tem as lindas formas de Silvia Pinal!) enquanto Simão acha que pode voltar ao seu local de penitência.
“Não adianta” lhe diz o Diabo “já há outro alguém lá!”
Não faltam voluntários sem noção para cometer atos sem o menor sentido em nome de Deus, parece afirmar Buñuel, com esse desfecho um tanto niilista e debochado.

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