terça-feira, 21 de agosto de 2018

Domingo Sangrento


Já de início, o filme do diretor Paul Greengrass (grande responsável por revelar seu talento ao mundo) se inicia com suas claras intenções de imparcialidade (não completamente atingidas pela narrativa): Duas declarações são simultaneamente mostradas em cortes alternados e urgentes que concedem a ambas o mesmo tempo de cena. Numa, o membro do parlamento irlandês, Ivan Cooper (James Nesbitt), esclarece os objetivos totalmente pacifistas da passeata marcada para o domingo dia 30 de janeiro de 1972, na cidade de Derry, na Irlanda do Norte.
Noutra, um general britânico (Tim Pigott-Smith), oficial a frente das tropas inglesas que procuram levar um intimidador senso de vigilância à cidade afirma que o exército buscará oprimir qualquer tentativa de insurreição local, o quê inclui passeatas –e tendo prestado tal aviso, ele considera, portanto, que uma confusão decorrente disso será culpa dos civis que insistiram no delito.
Eis a questão que a narrativa de Greengrass parece empenhada em elucidar: De quem foi, afinal, a culpa?
Mesmo que não houvesse uma aura de tensão crescente e impecável neste filme magistral, poucos seriam os expectadores que o adentrariam absolutamente ignorantes do fato de que o “Domingo Sangrento” foi um dos episódios mais lamentáveis da história da Irlanda, culminando com sua população alvejada por tropas militares inglesas, contabilizando a morte de vários inocentes –o quê indiretamente viabilizou ainda mais os pretextos hostis do grupo terrorista IRA aos olhos do mundo, e certamente aos olhos dos inúmeros jovens adeptos que depois disso a ele se juntaram.
Na mescla de cinema ficcional e documental que busca, “Domingo Sangrento” é magnífico. Ele paira entre uma circunstância e outra, indo e vindo com alarmante serenidade entre cada situação: O planejamento excessivamente cauteloso dos militares; a indignação velada da população com seus direitos podados; o tumulto ideológico natural e gradativo que cerca as diretrizes pacifistas ou não em torno da passeata (e que Cooper busca estoicamente ordenar e valorizar até o amargo fim); o caos de informação, confusão e ânimos acirrados que contamina ambas as partes do momento derradeiro –e que, conduz à tragédia que por fim Greengrass se presta a mostrar.
Ele deixa claro uma série de coisas: Que haviam pessoas de má fé de ambos os lados. Entre os manifestantes não apenas são flagrados membros do IRA (embora o filme se isente de mostrá-los em ação), como principalmente ele reitera o comportamento covarde de alguns jovens desordeiros que, contrariando as afirmações dos ajudantes do protesto, iniciam um confronto verbal contra os soldados, para depois atacá-los com pedras. São esses mesmos desordeiros que fogem na direção das pessoas desarmadas e de intenções puramente pacíficas quando os soldados recebem a ordem de retaliação –provocando assim uma junção indissociável dos grupos, confundido os militares que, naquele ponto da situação, estavam transtornados pela tensão.
Entre os militares britânicos, por sua vez, a narrativa acompanha a confusão dos soldados que abriram fogo na população baseados em conjecturas incertas, levados pelo turbilhão de adrenalina (e cujos fatos, mais tarde, eles se desdobram em explicações pouco convincentes para justificar) e, sobretudo, a atitude francamente detestável do general na entrevista lá do começo, que participa dos planejamentos estratégicos do início ao fim, mantendo-se bem informado na retaguarda durante todo o acontecimento, para ao final, consciente do desastre homérico deflagrado, se declarar hipocritamente como um mero observador.
Em algum ponto, Greengrass não deixa de afirmar, em sua origem irlandesa, uma certa posição em relação ao que pensa disso tudo –Cooper e alguns outros personagens do lado dos manifestantes estão entre os poucos que ganham uma humanização mais aprofundada –mas, conduz este espetacular filme político com uma implacável consciência da manutenção transparente dos fatos diante da obrigação que esse cinema tem.
E seu objetivo, plenamente atingido, acaba sendo a compreensão dos detalhes tão banais que nos separam e que infligem conflitos dolorosos entre nossas ideologias.
Depois desta obra fenomenal, a letra da bela música do U2, “Sunday Bloody Sunday”, tocada nos créditos finais, adquire uma contundência até então despercebida.

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