sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Kundun


Décadas antes de “Silêncio”, o mestre Martin Scorsese já havia mergulhado nos revezes históricos da fé neste notável “Kundun”.
Empregando o mesmo ímpeto com o qual narrava suas epopéias gangsteres, Scorsese registra os percalços de uma personalidade dedicada à paz: O décimo quarto Dalai-Lama do Tibet que esteve a frente do país durante a Segunda Guerra Mundial e testemunhou sua invasão pela China de Mao Tsé-Sung.
A jornada de Scorsese começa ainda na tenra idade de seu protagonista quando, com cerca da três anos de idade, foi submetido à um inusitado ritual a fim de se verificar se ele era a reencarnação do falecido Dalai-Lama –por sua vez, a personificação carnal do próprio Buda.
Uma vez constatado isso, o pequenino é levado aos monges tibetanos entre os quais passará o resto da vida, aprendendo as mais apuradas noções de política e as aplicações práticas do budismo, tal e qual gerações de escolhidos antes dele.
Entretanto, a trajetória do 14º Dalai-Lama foi extraordinária.
Ele esteve a frente do Tibet durante o tenso e conturbado período em que seu país esteve sob o jugo dos chineses cujos planos eram estender sua reformulaçao cultural e religiosa para lá também. Fiel aos seus próprios preceitos, o Dalai-Lama procurou impor uma oposição sem violência à opressão chinesa e enfrentou –como é habilmente mostrado –profundos questionamentos filosóficos acerca da real serventia de seus métodos ancestrais.
Sua postura o levou a uma espécie de exílio voluntário, fugindo para a Índia, onde passou décadas aguardando pela chance de regressar ao Tibet.
Falado em inglês, sem modismos ou maneirismos, o filme de Scorsese parece querer filtrar sua mensagem da forma mais transparente possível, ciente do quanto a paz pode ser mal interpretada em tempos de constante conflito ideológico.
Assim como fez em “A Última Tentanção de Cristo” ele enfatiza o objetivo primordial da crença (e de todas as crenças) jamais deixando de perder o foco na condição humana e nos lamentáveis pretextos que nos separam –e desse mote extrai as dúvidas singulares que corroem os grandes homens.
Como fez em “Silêncio”, ele lança esse olhar à uma cultura e a uma religião de aspectos bastante diferentes dos ocidentais, sem medo de fazer seu filme soar exótico, e nessa avaliação, sua generosidade e sua espirituosidade enxergam a mais pura necessidade de compreensão; de que, no final, somos seres humanos, diante da sábia necessidade de co-existirmos.
Em termos técnicos e artísticos, Scorsese pode, sim, ser um hábil poeta da violência, mas com “Kundun” ele quer provar que nada o fascina e o engrandece mais do que a paz e a conciliação.

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