O combustível para a brilhante premissa
articulada no inventivo filme do diretor Jaco Van Dormael (de “Sr. Ninguém” e
“O Novíssimo Testamento”) –merecidamente premiado com a Câmera de Ouro no
Festival de Cannes 1991 –é a certeza do protagonista de ter sido uma criança
trocada na maternidade.
Com efeito, toda boa-venturança ocasionada ao
seu antagonista deveria, portanto, ter sido sua; e nessa narrativa singular
–que se vale de sequências musicais, objetos que criam vida e delírios de
natureza expressionista para moldar impressões subjacentes –o filme procura dar
textura e substância a esse sentimento de rancor e vingança que contamina o personagem
principal à medida que ele deixa de ser um garoto e se torna adulto.
Numa linearidade multifacetada, a ação se
desenvolve em quatro tempos diferentes, sendo os mais significativos (e de
certa maneira os mais encantadores), os dois blocos que abrangem a infância: No
primeiro, aos oito anos, quando Thomas Van Hazebrouck se convence de que foi
substituído no berçário por Alfred Kant –e, conforme crescem, o comportamento
arrogante e presunçoso de Alfred apenas potencializa o mosaico de certezas em Thomas
de que, tudo que aconteceu com Alfred, deveria ter acontecido à ele; e,
portanto, à Thomas não restou absolutamente nada. No segundo, o ainda menino
Thomas desenvolve a identidade de Toto (donde vem o título original, “Toto Le
Héros”), sagaz agente secreto capaz das audácias que ele, Thomas, não pode
praticar. Esse alter-ego irá acompanha-lo por toda a vida, sendo seu mais
poderoso instrumento existencial contra o antagonismo de Alfred.
Os outros tempos dos quais a narrativa se ocupa
–a vida adulta e a velhice, em meio à qual Thomas assim narra sua história
–ganham o peso da reflexão, o sabor amargo da melancolia e especialmente a
inquietude eufórica do ritual da vingança enfim perpetrada, sobretudo diante da
lembrança das duas mulheres, os amores de sua vida, que Thomas perdeu para
Alfred: A própria irmã (!), Alice (Sandrine Blancke) e Evelyne (Mireille
Perrier).
Entre os tantos méritos que esse trabalho
desfruta, aquele que mais se evidencia ao expectador é certamente a condução
sensível e inteligente do diretor Van Dormael, a evitar as percepções
vingativas e obscuras, inerentes ao ponto de vista de seu protagonista, com uma
abordagem a um só tempo vívida, austera, bem-humorada e reflexiva.
Um tesouro a ser descoberto
por uma nova geração de cinéfilos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário