sexta-feira, 17 de maio de 2019

Um Homem Com Duas Vidas

O combustível para a brilhante premissa articulada no inventivo filme do diretor Jaco Van Dormael (de “Sr. Ninguém” e “O Novíssimo Testamento”) –merecidamente premiado com a Câmera de Ouro no Festival de Cannes 1991 –é a certeza do protagonista de ter sido uma criança trocada na maternidade.
Com efeito, toda boa-venturança ocasionada ao seu antagonista deveria, portanto, ter sido sua; e nessa narrativa singular –que se vale de sequências musicais, objetos que criam vida e delírios de natureza expressionista para moldar impressões subjacentes –o filme procura dar textura e substância a esse sentimento de rancor e vingança que contamina o personagem principal à medida que ele deixa de ser um garoto e se torna adulto.
Numa linearidade multifacetada, a ação se desenvolve em quatro tempos diferentes, sendo os mais significativos (e de certa maneira os mais encantadores), os dois blocos que abrangem a infância: No primeiro, aos oito anos, quando Thomas Van Hazebrouck se convence de que foi substituído no berçário por Alfred Kant –e, conforme crescem, o comportamento arrogante e presunçoso de Alfred apenas potencializa o mosaico de certezas em Thomas de que, tudo que aconteceu com Alfred, deveria ter acontecido à ele; e, portanto, à Thomas não restou absolutamente nada. No segundo, o ainda menino Thomas desenvolve a identidade de Toto (donde vem o título original, “Toto Le Héros”), sagaz agente secreto capaz das audácias que ele, Thomas, não pode praticar. Esse alter-ego irá acompanha-lo por toda a vida, sendo seu mais poderoso instrumento existencial contra o antagonismo de Alfred.
Os outros tempos dos quais a narrativa se ocupa –a vida adulta e a velhice, em meio à qual Thomas assim narra sua história –ganham o peso da reflexão, o sabor amargo da melancolia e especialmente a inquietude eufórica do ritual da vingança enfim perpetrada, sobretudo diante da lembrança das duas mulheres, os amores de sua vida, que Thomas perdeu para Alfred: A própria irmã (!), Alice (Sandrine Blancke) e Evelyne (Mireille Perrier).
Entre os tantos méritos que esse trabalho desfruta, aquele que mais se evidencia ao expectador é certamente a condução sensível e inteligente do diretor Van Dormael, a evitar as percepções vingativas e obscuras, inerentes ao ponto de vista de seu protagonista, com uma abordagem a um só tempo vívida, austera, bem-humorada e reflexiva.
Um tesouro a ser descoberto por uma nova geração de cinéfilos.

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