sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Santa Sangre

Alejandro Jodorowsky já inicia seu filme evidenciando seu objetivo vanguardista de desconcertar: Um homem nu a quem é dado o nome Fênix está empoleirado numa árvore no que parece ser um quarto de hospício. Um médico lhe suplica para alimentar-se de modo normal, em um prato de comida normal. Não adianta. Fênix quer mesmo é devorar um peixe cru tal qual um animal selvagem.
Ainda assim, o médico insiste para que Fênix saia para ver o mundo lá fora, e nesse ímpeto seus enfermeiros o vestem enquanto vemos a narrativa converte-lo num falcão que voa pelos céus de uma cidade a´te chegar num circo.
É um flashback, mas não sabemos ainda: São então os personagens desse circo que assumem certo protagonismo. Um garoto rejeitado pelo pai, dono do circo, e tratado de forma maternal pelo anão que adestra elefantes. No ensaio do número da Mulher Tatuada –Thelma Tixou, uma sedutora mulher com tatuagens dos pés à cabeça que inspira devoção cega aos palhaços –vemos a atração que ela exerce no pai do menino, enquanto sua filha, a sofrida equilibrista surda-muda desperta fascínio no filho.
É um amor que prescinde palavras; tanto pela natureza da deficiência da jovem quanto pela dinâmica de palco que predomina na relação, feita de mímica e delicada pantomina.
A mãe do menino (Blanca Guerra), por sua vez, está longe do circo: Ela e toda uma seita da qual integra tentam impedir a demolição de um templo, Santa Sangre, pelo proprietário irredutível do terreno. Para tentar amenizar o embate entre os fiéis (vestidos de vermelho) e as forças da autoridade (vestidos de azul) surge uma figura religiosa (um padre vestido da cor intermediária, o roxo).
Mas, o padre não tarda a repudiar todos eles ao averiguar melhor a ‘igreja’: Um templo em adoração a uma jovem esquartejada e estuprada –uma santa para eles –em nome de quem o vermelho do sangue adorna suas paredes e até mesmo o líquido da piscina interna –sangue sagrado ou mera tinta?
O templo é assim destruído, e a mãe regressa ao circo para flagrar, indignada, o marido em uma ostentação fálica de suas facas afiadas (!) com a Mulher Tatuada. Entretanto, apesar de toda a violenta injúria dela, o marido lhe exerce um controle quase mágico graças a uma tatuagem que traz no peito –muito parecida com a do personagem Fênix, do início.
Logo, então um drama se abate sobre o circo: A morte do elefante. No subsequente funeral, o imenso caixão é cortejado nas ruas para ser depois desovado nas margens de uma grande favela, onde dos habitantes famintos se fartam com a carne do cadáver animal. Diante do choro inconsolável do garoto, o pai decide dar-lhe um presente que ‘fará dele um homem’, nas suas palavras, e nele faz a mesma tatuagem de fênix no peito, à custa de muita dor e sangue da criança (!).
A rotina do circo prossegue, mas, as escapadas extraconjugais do pai do menino com a Mulher Tatuada não cessam, e culminam numa tragédia onde a mãe dele, em um acesso de ira, joga ácido sulfúrico sobre os genitais do infiel (!). O marido, em retaliação, corta-lhe os dois braços –tal como a proclamada santa que ela mesma venerava.
Incapaz de viver destituído de sua virilidade, o dono do circo, assim se suicida.
Compreendemos então que Fênix (vivido, pois, por Axel Jodorowsky, filho de Alejandro) é o menino que cresceu profundamente abalado pelo episódio.
Tentando ser reintegrado numa vida normal, Fênix é levado ao cinema junto a um grupo de portadores de Síndrome de Down, mas todos acabam indo parar num prostíbulo onde o catatônico Fênix revê a Mulher Tatuada.
A sua filha, a garota surda-muda –agora uma moça lindíssima nas formas da atriz Sabrina Dennison –sofre nas mãos da mãe que cobra em dinheiro para que alguns clientes possam estuprá-la (!!). Contudo, quando menos se espera, a Mulher Tatuada é assassinada e o mistério da identidade do assassino (não tão difícil de se supor) passa a definir a narrativa daí para frente.
Tendo fugido do hospício, Fênix passa a alternar entre duas personas: Aquela que ele seria sob influência do falecido pai, atraente às mulheres; e aquela que ele é sob influência da mãe (que, a propósito, continuou viva), na qual ele tem a identidade quase apagada por seu rancor e serve apenas como braços substitutos dela, com os quais ela inclusive, pratica seu ódio contra as mulheres promíscuas.
Dessa forma, ele enfileira vítimas como a corista com quem reencena o número das facas e uma bizarra lutadora musculosa, servindo de instrumento assassino para a gana de destruição de sua mãe, pelo menos até reencontrar a surda-muda e com ela, quem sabe, uma chance de redenção.
Algo que sua mãe não irá permitir.
Diante dessa magnífica parábola sobre as consequências corruptíveis da interferência parental na índole humana, e que é também um suspense slasher dos mais desiguais já feitos (ou um ‘semi-giallo’, se preferir) e um tratado contínuo sobre narrativa alegórica, a surpreendente reviravolta final é um exemplo da perícia de Alejandro Jodorowsky em conciliar inquietações muito particulares e complexas numa formidável (ainda que ocasionalmente desafiadora) realização cinematográfica.

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