Alejandro Jodorowsky já inicia seu filme
evidenciando seu objetivo vanguardista de desconcertar: Um homem nu a quem é
dado o nome Fênix está empoleirado numa árvore no que parece ser um quarto de
hospício. Um médico lhe suplica para alimentar-se de modo normal, em um prato
de comida normal. Não adianta. Fênix quer mesmo é devorar um peixe cru tal qual
um animal selvagem.
Ainda assim, o médico insiste para que Fênix
saia para ver o mundo lá fora, e nesse ímpeto seus enfermeiros o vestem
enquanto vemos a narrativa converte-lo num falcão que voa pelos céus de uma
cidade a´te chegar num circo.
É um flashback, mas não sabemos ainda: São então
os personagens desse circo que assumem certo protagonismo. Um garoto rejeitado
pelo pai, dono do circo, e tratado de forma maternal pelo anão que adestra
elefantes. No ensaio do número da Mulher Tatuada –Thelma Tixou, uma sedutora
mulher com tatuagens dos pés à cabeça que inspira devoção cega aos palhaços
–vemos a atração que ela exerce no pai do menino, enquanto sua filha, a sofrida
equilibrista surda-muda desperta fascínio no filho.
É um amor que prescinde palavras; tanto pela
natureza da deficiência da jovem quanto pela dinâmica de palco que predomina na
relação, feita de mímica e delicada pantomina.
A mãe do menino (Blanca Guerra), por sua vez,
está longe do circo: Ela e toda uma seita da qual integra tentam impedir a
demolição de um templo, Santa Sangre, pelo proprietário irredutível do
terreno. Para tentar amenizar o embate entre os fiéis (vestidos de vermelho) e
as forças da autoridade (vestidos de azul) surge uma figura religiosa (um padre
vestido da cor intermediária, o roxo).
Mas, o padre não tarda a repudiar todos eles ao
averiguar melhor a ‘igreja’: Um templo em adoração a uma jovem esquartejada e
estuprada –uma santa para eles –em nome de quem o vermelho do sangue adorna
suas paredes e até mesmo o líquido da piscina interna –sangue sagrado ou mera
tinta?
O templo é assim destruído, e a mãe regressa ao
circo para flagrar, indignada, o marido em uma ostentação fálica de suas facas
afiadas (!) com a Mulher Tatuada. Entretanto, apesar de toda a violenta injúria
dela, o marido lhe exerce um controle quase mágico graças a uma tatuagem que
traz no peito –muito parecida com a do personagem Fênix, do início.
Logo, então um drama se abate sobre o circo: A
morte do elefante. No subsequente funeral, o imenso caixão é cortejado nas ruas
para ser depois desovado nas margens de uma grande favela, onde dos habitantes
famintos se fartam com a carne do cadáver animal. Diante do choro inconsolável
do garoto, o pai decide dar-lhe um presente que ‘fará dele um homem’, nas suas
palavras, e nele faz a mesma tatuagem de fênix no peito, à custa de muita dor e
sangue da criança (!).
A rotina do circo prossegue, mas, as escapadas
extraconjugais do pai do menino com a Mulher Tatuada não cessam, e culminam
numa tragédia onde a mãe dele, em um acesso de ira, joga ácido sulfúrico sobre
os genitais do infiel (!). O marido, em retaliação, corta-lhe os dois braços
–tal como a proclamada santa que ela mesma venerava.
Incapaz de viver destituído de sua virilidade,
o dono do circo, assim se suicida.
Compreendemos então que Fênix (vivido, pois,
por Axel Jodorowsky, filho de Alejandro) é o menino que cresceu profundamente
abalado pelo episódio.
Tentando ser reintegrado numa vida normal,
Fênix é levado ao cinema junto a um grupo de portadores de Síndrome de Down,
mas todos acabam indo parar num prostíbulo onde o catatônico Fênix revê a
Mulher Tatuada.
A sua filha, a garota surda-muda –agora uma
moça lindíssima nas formas da atriz Sabrina Dennison –sofre nas mãos da mãe que
cobra em dinheiro para que alguns clientes possam estuprá-la (!!). Contudo,
quando menos se espera, a Mulher Tatuada é assassinada e o mistério da
identidade do assassino (não tão difícil de se supor) passa a definir a
narrativa daí para frente.
Tendo fugido do hospício, Fênix passa a
alternar entre duas personas: Aquela que ele seria sob influência do falecido
pai, atraente às mulheres; e aquela que ele é sob influência da mãe (que, a
propósito, continuou viva), na qual ele tem a identidade quase apagada por seu
rancor e serve apenas como braços substitutos dela, com os quais ela inclusive,
pratica seu ódio contra as mulheres promíscuas.
Dessa forma, ele enfileira vítimas como a
corista com quem reencena o número das facas e uma bizarra lutadora musculosa,
servindo de instrumento assassino para a gana de destruição de sua mãe, pelo
menos até reencontrar a surda-muda e com ela, quem sabe, uma chance de
redenção.
Algo que sua mãe não irá permitir.
Diante dessa magnífica
parábola sobre as consequências corruptíveis da interferência parental na
índole humana, e que é também um suspense slasher dos mais desiguais já feitos
(ou um ‘semi-giallo’, se preferir) e um tratado contínuo sobre narrativa
alegórica, a surpreendente reviravolta final é um exemplo da perícia de
Alejandro Jodorowsky em conciliar inquietações muito particulares e complexas
numa formidável (ainda que ocasionalmente desafiadora) realização
cinematográfica.
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