Um dos grandes trabalhos do diretor Spike Lee
nos anos 1990, “O Verão de Sam” oferece sua visão ampla, detalhada e pessoal
dos eventos deflagrados na Nova York do ano de 1977 temperada de um reflexivo
acréscimo ficcional.
Como o faz sempre (ou, ao menos, quase sempre),
Lee sedimenta brilhantemente a concepção de tempo e espaço, situando habilmente
o expectador num clima da insegurança que contagia a cidade de Nova York,
somando desconforto ao calor escaldante das ruas: Um serial killer,
auto-intitulado “O Filho de Sam” vem fazendo vítimas, gerando um assombrado
clamor da população e deixando a polícia em alerta.
Lee se vale dessa exuberante e tensa
ambientação (magistralmente aclimatada por uma contagiante trilha sonora com
hits do período) para emoldurar o dia-a-dia de seu protagonista, o
ítalo-americano Vinny (John Leguizano, num bom momento) que, como todos os
moradores do bairro do Bronx, experimenta um temor mais palpável –e por isso
mesmo, uma necessidade interior de encontrar tal assassino.
É uma fauna caótica, registrada em toda sua
tolice num momento irascível com o sangue quente à flor da pele: Além de Vinny,
seus companheiros de vizinhança e de infância, Joey (Michael Rispoli, da série
“The Deuce”), Bobby (Brian Tarantina) e Brian (Ken Garito), todos unidos por
uma indignação tóxica, irreprimível e violenta, e por uma necessidade de
extravasar sua raiva latente em uma investigação gaiata atrás de um possível
suspeito. Há também o amigo de longa
data de Vinny, Ritchie (Adrien Brody, extremamente promissor, anos antes do
Oscar por “O Pianista”), recém-chegado ao bairro depois de um período viajando
pela Inglaterra, de onde trouxe desiguais maneirismos punk –comportamento que,
por sua natureza estranha, desperta desconfiança e hostilidade nos outros.
Vinny é casado com a formosa Dionna (a linda
Mira Sorvino), e embora não falte amor em seu casamento, ele cede às tentações
corriqueiras de transar com outras mulheres –algumas perigosamente próximas de
sua esposa.
É numa dessas escapadas que Vinny quase cruza
com “O Filho de Sam”: O serial killer termina assassinando um casal no carro ao
lado em que Vinny estava pouco antes de partir –e, escapar por um triz dessa
ameaça sem, no entanto, poder compartilhar a informação com Dionna, deixa seus
nervos completamente acirrados.
É uma ciranda de drama cotidianos, definidos
por uma aflição e um senso de perplexidade coletiva que Spike Lee vai
brilhantemente montando ao longo desse painel de três horas de duração: As
circunstâncias inevitavelmente corrosivas das quais padece o casamento de Vinny
e Dionna (potencializadas numa cena em que os dois participam de uma orgia com
a qual, mais tarde, o imaturo Vinny não saberá lidar); a busca insana,
incessante e insensata de Joey e os demais pelo assassino; as tentativas
paralelas de Ritchie em seguir em frente ao lado da namorada Ruby (Jennifer
Esposito), alheio ao inesperado perigo que lhe ronda. Tudo isso intercalado
pela atividade do psicopata que, ao lado do calor recorde registrado naquele
verão e da atmosfera conflituosa dos embates sociais de então, criam uma
atmosfera de tensão efervescente e caos iminente que o diretor tem tanto apreço
e fascínio em registrar.
Ao contrário de “Seven-Os Sete Crimes Capitais”
ou de “O Silêncio dos Inocentes”, não é tanto na busca pelo assassino, ou mesmo nos
percalços sinistros de sua convivência com a própria psicopatia que se ocupa a
narrativa de Spike Lee.
“O Filho de Sam”, quando aparece, o faz brevemente no terço
final do filme –quanto aos policiais, sua investigação ganha uma risível
atenção somente na cena em que os detetives (vividos por Anthony LaPlagia e
Roger Guenveur Smith) pedem ajuda ao mafioso interpretado por Ben Gazzara, o
líder daquela comunidade.
Na realidade, o que interessa ao diretor Lee é
subverter as expectativas de quem julgava ser esta uma incursão sua nos filmes
de psicopata ou investigação policial, e investigar algo que, para ele e para
sua carreira, é mais substancial: As deduções equivocadas acometidas pelo medo.
A maneira com que o preconceito, o ódio e a paranóia encontram ambiente fecundo
num cenário desgastado pela tensão de morte súbita, aleatória e repentina.
E nesse sentido, não são os
breves (ainda que significativos) momentos mostrando “O Filho de Sam” que
exemplificam o discurso moral de Lee, mas sim a sucessão de acontecimentos
indiretamente provocados por ele nos personagens que representam o abalado
cidadão comum, e assim, a forma súbita e instantânea com que a barbárie pode
comparecer em indivíduos supostamente civilizados quando conduzidos a um
extremo existencial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário