terça-feira, 10 de setembro de 2019

O Verão de Sam

Um dos grandes trabalhos do diretor Spike Lee nos anos 1990, “O Verão de Sam” oferece sua visão ampla, detalhada e pessoal dos eventos deflagrados na Nova York do ano de 1977 temperada de um reflexivo acréscimo ficcional.
Como o faz sempre (ou, ao menos, quase sempre), Lee sedimenta brilhantemente a concepção de tempo e espaço, situando habilmente o expectador num clima da insegurança que contagia a cidade de Nova York, somando desconforto ao calor escaldante das ruas: Um serial killer, auto-intitulado “O Filho de Sam” vem fazendo vítimas, gerando um assombrado clamor da população e deixando a polícia em alerta.
Lee se vale dessa exuberante e tensa ambientação (magistralmente aclimatada por uma contagiante trilha sonora com hits do período) para emoldurar o dia-a-dia de seu protagonista, o ítalo-americano Vinny (John Leguizano, num bom momento) que, como todos os moradores do bairro do Bronx, experimenta um temor mais palpável –e por isso mesmo, uma necessidade interior de encontrar tal assassino.
É uma fauna caótica, registrada em toda sua tolice num momento irascível com o sangue quente à flor da pele: Além de Vinny, seus companheiros de vizinhança e de infância, Joey (Michael Rispoli, da série “The Deuce”), Bobby (Brian Tarantina) e Brian (Ken Garito), todos unidos por uma indignação tóxica, irreprimível e violenta, e por uma necessidade de extravasar sua raiva latente em uma investigação gaiata atrás de um possível suspeito.  Há também o amigo de longa data de Vinny, Ritchie (Adrien Brody, extremamente promissor, anos antes do Oscar por “O Pianista”), recém-chegado ao bairro depois de um período viajando pela Inglaterra, de onde trouxe desiguais maneirismos punk –comportamento que, por sua natureza estranha, desperta desconfiança e hostilidade nos outros.
Vinny é casado com a formosa Dionna (a linda Mira Sorvino), e embora não falte amor em seu casamento, ele cede às tentações corriqueiras de transar com outras mulheres –algumas perigosamente próximas de sua esposa.
É numa dessas escapadas que Vinny quase cruza com “O Filho de Sam”: O serial killer termina assassinando um casal no carro ao lado em que Vinny estava pouco antes de partir –e, escapar por um triz dessa ameaça sem, no entanto, poder compartilhar a informação com Dionna, deixa seus nervos completamente acirrados.
É uma ciranda de drama cotidianos, definidos por uma aflição e um senso de perplexidade coletiva que Spike Lee vai brilhantemente montando ao longo desse painel de três horas de duração: As circunstâncias inevitavelmente corrosivas das quais padece o casamento de Vinny e Dionna (potencializadas numa cena em que os dois participam de uma orgia com a qual, mais tarde, o imaturo Vinny não saberá lidar); a busca insana, incessante e insensata de Joey e os demais pelo assassino; as tentativas paralelas de Ritchie em seguir em frente ao lado da namorada Ruby (Jennifer Esposito), alheio ao inesperado perigo que lhe ronda. Tudo isso intercalado pela atividade do psicopata que, ao lado do calor recorde registrado naquele verão e da atmosfera conflituosa dos embates sociais de então, criam uma atmosfera de tensão efervescente e caos iminente que o diretor tem tanto apreço e fascínio em registrar.
Ao contrário de “Seven-Os Sete Crimes Capitais” ou de “O Silêncio dos Inocentes”, não é tanto na busca pelo assassino, ou mesmo nos percalços sinistros de sua convivência com a própria psicopatia que se ocupa a narrativa de Spike Lee.
O Filho de Sam”, quando aparece, o faz brevemente no terço final do filme –quanto aos policiais, sua investigação ganha uma risível atenção somente na cena em que os detetives (vividos por Anthony LaPlagia e Roger Guenveur Smith) pedem ajuda ao mafioso interpretado por Ben Gazzara, o líder daquela comunidade.
Na realidade, o que interessa ao diretor Lee é subverter as expectativas de quem julgava ser esta uma incursão sua nos filmes de psicopata ou investigação policial, e investigar algo que, para ele e para sua carreira, é mais substancial: As deduções equivocadas acometidas pelo medo. A maneira com que o preconceito, o ódio e a paranóia encontram ambiente fecundo num cenário desgastado pela tensão de morte súbita, aleatória e repentina.
E nesse sentido, não são os breves (ainda que significativos) momentos mostrando “O Filho de Sam” que exemplificam o discurso moral de Lee, mas sim a sucessão de acontecimentos indiretamente provocados por ele nos personagens que representam o abalado cidadão comum, e assim, a forma súbita e instantânea com que a barbárie pode comparecer em indivíduos supostamente civilizados quando conduzidos a um extremo existencial.

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