quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Osmosis Jones

Vez ou outra é possível descobrir, no desigual manancial criativo que foram os períodos das décadas de 1980 e 90, uma obra a representar um corpo absolutamente estranho em qualquer filmografia. É o caso deste “Osmosis Jones” lançado já no fim dos anos 1990 que, sem o exuberante aparato técnico de “Uma Cilada Para Roger Rabbit” ou sem o atrevimento artístico de “Cool World-Mundo Proibido”, uniu, em sua proposta e narrativa, filme em live-action e desenho animado valendo-se simplesmente do princípio básico da ideia: Tem-se aqui uma radiografia bem humorada do que se passa dentro do corpo humano em casos de crises (ou seja, doenças) e, toda vez que o filme deixa seus atores de carne e osso para adentrar a impraticável encenação no interior do organismo, ele se torna animação.
“Osmosis Jones”, veja bem, não é, e nem faz a menor questão de ser, algo documental ou didático: As reações do corpo registradas podem até guardar algum embasamento científico (fruto de um afinco minimamente dedicado ao roteiro), mas seus realizadores encobrem isso ostentando uma recriação do corpo humano em tons de aventura policial, com as intrigas políticas, o submundo da criminalidade e os códigos de conduta dos homens da lei –não raro, assumindo por meio disso, vários expedientes da produção cinematográfica do gênero.
São quase dois filmes tão distintos e incompatíveis entre si que os esforços em conectá-los numa mesma premissa acaba gerando uma estranha curiosidade.
O primeiro desses filmes mostra Frank (Bill Murray), um cara de meia-idade completamente relapso com sua higiene e sua alimentação, para desespero da filha pequena, Shane (Elena Franklin) que, mesmo com pouca idade, já compreende as consequências do desleixo do pai –e teme pela saúde dele.
Trabalhando num zoológico, Frank come, por birra, um ovo cozido emporcalhado que acaba por levar um terrível vírus ao seu organismo.

O que dá a deixa para o segundo filme se iniciar: É acionado o sistema imunológico –representado aqui como uma força policial sujeita à corrupções, complicações na hierarquia e disputas de egos entre seus agentes –que, em princípio, julga ser aquele um problema corriqueiro; todos sabem que Frank vive comendo porcaria!
É um desacreditado agente da Imunidade, Osmosis Jones (voz de Chris Rock) quem fareja instintivamente uma ameaça singular naquele caso: O vírus denominado Thrax (voz de Laurence Fishburne) assume as características de um senhor do crime e, em seus tentaculares atos prejudiciais ao organismo, ele vai de um extremo a outro no corpo de Frank –da unha encravada no dedão do pé até as áreas do cérebro onde mora a elite!
 A extensão caústica de seus poderes começa, pouco a pouco, a minar a integridade física de Frank, levando-o a sucumbir.
De um lado assim, temos o filme de comédia, dirigido pelos irmãos Peter e Bobby Farelli que, como em todas as suas obras, por sinal, ostenta um teor inclinado para o grosseiro, humor que o sempre excelente Bill Murray tira de letra na sua implacável interpretação de um indivíduo assolado por todos os males da displicência alimentar.
Do outro, temos a aventura policialesca de Osmosis Jones, cujo relutante parceiro (filmes sobre duplas de policiais sempre têm um) vem a ser um agente designado ao organismo por um cápsula de remédio, o altivo e dedicado Trix (voz de David Hyde Pierce).
Esse filme animado, de amplitude e escopo muito maior, é dirigido pelo especialista em animação Tom Sito concedendo ao seu trabalho um estilo referencial completamente distinto dos Farelli –essa incongruência não afeta o resultado como um todo de “Osmosis Jones”; as transições (uma ou outra até bem inspirada) deixam claro que, na maior parte do tempo, a mesma trama é compartilhada por dois filmes completamente diferentes, e fazem desse aspecto um dos motivos de graça da produção. Além do quê, quando se fazem necessárias emendas mais elaboradas para que a relação entre os núcleos díspares tenha propósito junto à narrativa (sobretudo, em seu clímax), o roteiro de Marc Hyman exibe a devida coerência e perspicácia.
O grande calcanhar de Aquiles de “Osmosis Jones” é, no entanto, a plateia a quem ele se dirige: A animação, o filme a emoldurá-la e a trama que costura ambos não têm vocação para envolver crianças pequenas (salvo a simplicidade lúdica no designer dos personagens); e a união do humor abertamente escrachado com o film noir à bordo das células do organismo não parece ter uma faixa específica do público à qual se destinar.
Eis, portanto, o fator que pode ter levado a um injusto esquecimento este peculiar e intrigante exercício cinematográfico de junção de gêneros.

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