Vez ou outra é possível descobrir, no desigual
manancial criativo que foram os períodos das décadas de 1980 e 90, uma obra a
representar um corpo absolutamente estranho em qualquer filmografia. É o caso
deste “Osmosis Jones” lançado já no fim dos anos 1990 que, sem o exuberante
aparato técnico de “Uma Cilada Para Roger Rabbit” ou sem o atrevimento
artístico de “Cool World-Mundo Proibido”, uniu, em sua proposta e narrativa, filme em
live-action e desenho animado valendo-se simplesmente do princípio básico da
ideia: Tem-se aqui uma radiografia bem humorada do que se passa dentro do corpo
humano em casos de crises (ou seja, doenças) e, toda vez que o filme deixa seus
atores de carne e osso para adentrar a impraticável encenação no interior do
organismo, ele se torna animação.
“Osmosis Jones”, veja bem, não é, e nem faz a
menor questão de ser, algo documental ou didático: As reações do corpo
registradas podem até guardar algum embasamento científico (fruto de um afinco
minimamente dedicado ao roteiro), mas seus realizadores encobrem isso
ostentando uma recriação do corpo humano em tons de aventura policial, com as
intrigas políticas, o submundo da criminalidade e os códigos de conduta dos
homens da lei –não raro, assumindo por meio disso, vários expedientes da produção
cinematográfica do gênero.
São quase dois filmes tão distintos e
incompatíveis entre si que os esforços em conectá-los numa mesma premissa acaba
gerando uma estranha curiosidade.
O primeiro desses filmes mostra Frank (Bill
Murray), um cara de meia-idade completamente relapso com sua higiene e sua
alimentação, para desespero da filha pequena, Shane (Elena Franklin) que, mesmo
com pouca idade, já compreende as consequências do desleixo do pai –e teme pela
saúde dele.
Trabalhando num zoológico, Frank come, por
birra, um ovo cozido emporcalhado que acaba por levar um terrível vírus ao seu
organismo.
O que dá a deixa para o segundo filme se
iniciar: É acionado o sistema imunológico –representado aqui como uma força
policial sujeita à corrupções, complicações na hierarquia e disputas de egos
entre seus agentes –que, em princípio, julga ser aquele um problema
corriqueiro; todos sabem que Frank vive comendo porcaria!
É um desacreditado agente da Imunidade, Osmosis
Jones (voz de Chris Rock) quem fareja instintivamente uma ameaça singular
naquele caso: O vírus denominado Thrax (voz de Laurence Fishburne) assume as
características de um senhor do crime e, em seus tentaculares atos prejudiciais
ao organismo, ele vai de um extremo a outro no corpo de Frank –da unha
encravada no dedão do pé até as áreas do cérebro onde mora a elite!
A
extensão caústica de seus poderes começa, pouco a pouco, a minar a integridade
física de Frank, levando-o a sucumbir.
De um lado assim, temos o filme de comédia,
dirigido pelos irmãos Peter e Bobby Farelli que, como em todas as suas obras,
por sinal, ostenta um teor inclinado para o grosseiro, humor que o sempre
excelente Bill Murray tira de letra na sua implacável interpretação de um
indivíduo assolado por todos os males da displicência alimentar.
Do outro, temos a aventura policialesca de
Osmosis Jones, cujo relutante parceiro (filmes sobre duplas de policiais sempre
têm um) vem a ser um agente designado ao organismo por um cápsula de remédio, o
altivo e dedicado Trix (voz de David Hyde Pierce).
Esse filme animado, de amplitude e escopo muito
maior, é dirigido pelo especialista em animação Tom Sito concedendo ao seu
trabalho um estilo referencial completamente distinto dos Farelli –essa
incongruência não afeta o resultado como um todo de “Osmosis Jones”; as
transições (uma ou outra até bem inspirada) deixam claro que, na maior parte do
tempo, a mesma trama é compartilhada por dois filmes completamente diferentes,
e fazem desse aspecto um dos motivos de graça da produção. Além do quê, quando
se fazem necessárias emendas mais elaboradas para que a relação entre os
núcleos díspares tenha propósito junto à narrativa (sobretudo, em seu clímax),
o roteiro de Marc Hyman exibe a devida coerência e perspicácia.
O grande calcanhar de Aquiles de “Osmosis
Jones” é, no entanto, a plateia a quem ele se dirige: A animação, o filme a
emoldurá-la e a trama que costura ambos não têm vocação para envolver crianças
pequenas (salvo a simplicidade lúdica no designer dos personagens); e a união
do humor abertamente escrachado com o film noir à bordo das células do
organismo não parece ter uma faixa específica do público à qual se destinar.
Eis, portanto, o fator que
pode ter levado a um injusto esquecimento este peculiar e intrigante exercício
cinematográfico de junção de gêneros.
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