segunda-feira, 4 de maio de 2020

Laura

“Jamais vou me esquecer do fim de semana em que Laura morreu.”
A frase que abre um dos mais brilhantes filmes noir já realizados e uma das melhores obras entregues pelo diretor Otto Premiger já trata de estabelecer a situação por meio da qual a trama encontra seu ponto de partida –e nisso há um brilhantismo que só aos poucos será percebido –o assassinato de Laura Hunt (a estonteante Gene Tierney) que ocupa o cerne da questão desde o princípio do filme.
O detetive Mark McPherson (Dana Andrews, formidável) se incumbe das investigações e de pronto esbarra nas características insólitas e escorregadias do caso, especialmente materializadas em dois personagens que não facilitam em nada seu trabalho: Shelby Carpenter (Vincent Price, majestoso em sua canalhice) o suposto noivo de Laura, e seu melhor amigo Waldo Lydecker (Clifton Webb, brilhante).
A dinâmica entre Laura, Shelby e Waldo logo se mostra intrigante nos flashbacks que a esclarecem: À sua maneira egoísta, afetada (afeminada, até) e manipuladora Waldo amava Laura, e com isso, a medida que sua amizade se tornava cada vez mais simbiótica com ela, Waldo tentava usar de seus recursos para sabotar todos os pretendentes que buscavam ganhar o coração da garota.
E Shelby era um caso incomum: Inescrupuloso, vigarista, playboy e enganador, ele mesmo já fornecia os motivos para Laura deixá-lo –e tais motivos, transcorrido o crime o fazem, na opinião de Waldo, o suspeito nº 1.
E é a partir daqui, leitor desgostoso com spoilers, que esta resenha deve deixar de interessá-lo.
O fator realmente inusitado na investigação de McPherson, no entanto, ocorre quando ele se descobre apaixonado por Laura (!) –instigado pelos relatos acerca dela e pela sua visão quase onipresente no quadro exposto em sua sala de estar.
Dono de uma narrativa primordial, o filme de Preminger equilibra uma reviravolta após a outra sem jamais perder o fio da meada, graças à uma brilhante simplicidade em sua premissa que poucos (quiçá, nenhum) filme hoje é capaz de igualar: Em determinado momento, naquela que pode ser considerada a grande (e monumental) guinada do filme, Laura aparece viva (!).
Pode parecer absurdo, mas o filme se sai de forma maravilhosa e elegante no esclarecimento desse quiproquó: Laura foi dada como morta numa sexta-feira, quando se preparava para ir passar o fim de semana numa casa de campo. Alguém assassinou, com um tiro de espingarda no rosto, um moça com suas características físicas. Durante todo o tempo em que ficou na casa de campo, Laura não recebeu quaisquer notícias, enquanto todos os seus conhecidos deduziram que ela havia morrido. Ela só voltou para casa na terça-feira à noite, encontrando lá o Tenente McPherson, que mal disfarçou seu estarrecimento –lembre-se o filme pertence à década de 1940, onde a informação não tinha os meios digitais e a agilidade que possui hoje.
Ao Tenente McPherson restam então duas novas questões: Descobrir quem, afinal de contas, foi a pessoa assassinada no apartamento de Laura, e encontrar o culpado sendo que ganhou uma nova suspeita em potencial, a própria Laura.
A complicar tudo isso, está o interesse de McPherson por Laura –que, verdade seja dita, é transformada pela narrativa de Preminger e pela atuação adorável da lindíssima Gene Tierney, num perfeito oposto das femmes fatales do gênero: Apaixonante, ela é a personagem que torcemos para ver em segurança e seu romance com o Tenente McPherson ganha a cumplicidade do expectador porque ele é o único personagem masculino a emergir com decência e dignidade em meio à tantos tipos ambíguos e dissimulados.
Uma síntese sensacional de investigação criminal repleta de lances surpreendentes e de um inesperado e marcante viés romântico, “Laura”, dentro da categoria do filme noir, só encontra rival na obra-prima “O Terceiro Homem” quando o assunto é uma narrativa absorvente que envolve o público com uma trama construída por detalhes diferenciados e fascinantes desdobramentos.

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