A câmera trêmula, o retrato despojado, a miséria narrativamente contundente, eis os predicados nada incomuns que apontam imediatamente a obra do diretor Benh Zeitlin como o produto do cinema independente que é. Todavia, passado essa impressão convencional, e superadas as barreiras de sua procedência autoral, “Indomável Sonhadora” logo começa a conquistar o expectador.
Com sua câmera irrequieta, a sacolejar às suas
costas, ou ao seu lado, Zeitlin acompanha os moradores de uma comunidade paupérrima
do que aparenta ser a região de Nova Orleans, em especial a garotinha de apenas
seis anos, Hushpuppy (a extraordinariamente expressiva Quvenzhané Wallis). Por
ser apenas uma criança –e por narrar o próprio filme que protagoniza –sabemos
apenas o que Hushpuppy sabe, ou seja, o básico para compreendermos
integralmente a percepção instintiva do seu mundo.
Hushpuppy não tem mãe –ela fugiu sem deixar
recados – e a figura paterna lhe é minimamente afável: Para Wink (Dwight
Henry), seu pai, a garotinha precisa menos de carinho e bajulação e mais de
incentivo para que seu lado selvagem se mantenha desperto, fortalecendo-a para
os revezes do mundo: Indicativa disso é a cena em que Wink, ao ver a filha
tendo aulas de como cortar um caranguejo, manda-lhe que deixe de lado os
talheres, para fazê-lo com as próprias mãos!
Essa concepção desigual, inusitada e áspera da
vida e, mais necessariamente, da sobrevivência, está impregnada em todo o
filme. Nele, Hushpuppy testemunha, ao lado do pai, a aproximação do Furacão
Katrina, a assolar toda a região onde mora junto de sua peculiar vizinhança,
chamada por eles de ‘Bathtube’ –ou a ‘Banheira’.
Em paralelo a isso, vemos cenas intermediárias
de seres monstruosos –os ‘beasts of the southern wild’ ou ‘monstros do sul selvagem’,
como no título original –na trajetória de uma espécie de migração.
Como já vinham sido alertados pelas autoridades
antes –algo que ignoravam com teimosa presunção –a tempestade acaba submergindo
o pouco de terra firme que todos eles tinham para morar e, por muitas semanas,
Hushpuppy, seu pai e todos os seus amigos, têm que sobreviver em casas
flutuantes improvisadas –se é que tais construções desoladas poderiam, em algum
momento, serem chamadas casas... Quando o nível da água enfim desce –graças à um
ato quase terrorista da parte de Wink e Hushpuppy que explodem uma barragem
próxima –o que se revela não é muito melhor: Os meses de submersão na água
salgada mataram plantas e animais, e transformaram o solo numa lama
intransitável.
Embora ainda insistam em continuar morando em
sua precária habitação, Hushpuppy e Wink são levados à um centro para
desabrigados, onde é descoberta a doença terminal que está consumindo Wink, e
que o leva a tentar mostrar para Hushpuppy, um bocado sem tato, a importância
de se desprender da dependência dele o quanto antes.
E assim, a pequena protagonista avança, ao
sabor dessas desventuras, primeiro de volta à ‘Bathtube’, na insistência
existencial de se manter pertencente ao lar, e depois, ao lado de outras
meninas da comunidade, numa viagem de barco que às leva ao que parece ser uma
espécie de prostíbulo (!), onde Hushpuppy encontra algo muito próximo de uma
figura materna. Ao decidir regressar e encarar de frente seus infortúnios,
Hushpuppy acaba levando o filme a colidir com as próprias metáforas que
cultivava em contraponto –os seres monstruosos em migração.
Nesse ponto, e no arremate que ele promove aos
conflitos de ordem sensorial do filme, o trabalho de Zeitlin exige do público
uma cumplicidade inesperada, uma compreensão condescendente de que a trajetória
de sua pequena heroína é um misto de realismo fantástico, drama poético e
aventura subjetiva.
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