quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Indomável Sonhadora


 A câmera trêmula, o retrato despojado, a miséria narrativamente contundente, eis os predicados nada incomuns que apontam imediatamente a obra do diretor Benh Zeitlin como o produto do cinema independente que é. Todavia, passado essa impressão convencional, e superadas as barreiras de sua procedência autoral, “Indomável Sonhadora” logo começa a conquistar o expectador.

Com sua câmera irrequieta, a sacolejar às suas costas, ou ao seu lado, Zeitlin acompanha os moradores de uma comunidade paupérrima do que aparenta ser a região de Nova Orleans, em especial a garotinha de apenas seis anos, Hushpuppy (a extraordinariamente expressiva Quvenzhané Wallis). Por ser apenas uma criança –e por narrar o próprio filme que protagoniza –sabemos apenas o que Hushpuppy sabe, ou seja, o básico para compreendermos integralmente a percepção instintiva do seu mundo.

Hushpuppy não tem mãe –ela fugiu sem deixar recados – e a figura paterna lhe é minimamente afável: Para Wink (Dwight Henry), seu pai, a garotinha precisa menos de carinho e bajulação e mais de incentivo para que seu lado selvagem se mantenha desperto, fortalecendo-a para os revezes do mundo: Indicativa disso é a cena em que Wink, ao ver a filha tendo aulas de como cortar um caranguejo, manda-lhe que deixe de lado os talheres, para fazê-lo com as próprias mãos!

Essa concepção desigual, inusitada e áspera da vida e, mais necessariamente, da sobrevivência, está impregnada em todo o filme. Nele, Hushpuppy testemunha, ao lado do pai, a aproximação do Furacão Katrina, a assolar toda a região onde mora junto de sua peculiar vizinhança, chamada por eles de ‘Bathtube’ –ou a ‘Banheira’.

Em paralelo a isso, vemos cenas intermediárias de seres monstruosos –os ‘beasts of the southern wild’ ou ‘monstros do sul selvagem’, como no título original –na trajetória de uma espécie de migração.

Como já vinham sido alertados pelas autoridades antes –algo que ignoravam com teimosa presunção –a tempestade acaba submergindo o pouco de terra firme que todos eles tinham para morar e, por muitas semanas, Hushpuppy, seu pai e todos os seus amigos, têm que sobreviver em casas flutuantes improvisadas –se é que tais construções desoladas poderiam, em algum momento, serem chamadas casas... Quando o nível da água enfim desce –graças à um ato quase terrorista da parte de Wink e Hushpuppy que explodem uma barragem próxima –o que se revela não é muito melhor: Os meses de submersão na água salgada mataram plantas e animais, e transformaram o solo numa lama intransitável.

Embora ainda insistam em continuar morando em sua precária habitação, Hushpuppy e Wink são levados à um centro para desabrigados, onde é descoberta a doença terminal que está consumindo Wink, e que o leva a tentar mostrar para Hushpuppy, um bocado sem tato, a importância de se desprender da dependência dele o quanto antes.

E assim, a pequena protagonista avança, ao sabor dessas desventuras, primeiro de volta à ‘Bathtube’, na insistência existencial de se manter pertencente ao lar, e depois, ao lado de outras meninas da comunidade, numa viagem de barco que às leva ao que parece ser uma espécie de prostíbulo (!), onde Hushpuppy encontra algo muito próximo de uma figura materna. Ao decidir regressar e encarar de frente seus infortúnios, Hushpuppy acaba levando o filme a colidir com as próprias metáforas que cultivava em contraponto –os seres monstruosos em migração.

Nesse ponto, e no arremate que ele promove aos conflitos de ordem sensorial do filme, o trabalho de Zeitlin exige do público uma cumplicidade inesperada, uma compreensão condescendente de que a trajetória de sua pequena heroína é um misto de realismo fantástico, drama poético e aventura subjetiva.

Poderia ser essa uma armadilha na qual o filme inteiro ameaçava cair. Isso não ocorre graças a um equilíbrio espantoso da direção de Zeitlin e de seu entendimento do fluxo de imagens e experiências a compor os significados, intuitivos ou não, da realidade de Hushpuppy, e sobretudo, graças à pequena Qyvenzhané Wallis, interpretando a própria, a conduzir o filme, cena a cena, momento a momento, com uma presença sólida e serena, a colocar no chinelo muitos intérpretes adultos.

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