terça-feira, 29 de dezembro de 2020

V de Vingança

 


“Ele era meu pai, e minha mãe. Ele era meu irmão, meu amigo. Ele era eu, e era você. Ele era todos nós.”

Em tempos de uma nociva polarização de ideologias políticas é interessante rever “V de Vingança” e perceber o quanto ele é brilhantemente conciliatório em seu subtexto, sugerindo apesar de tudo que o objetivo conquistado pelo alto preço da liberdade está, sem sombra de dúvida, no equilíbrio e na moderação.

Graphic novel criada pela mente fervilhante do escritor Alan Moore (que, marrento que só, exigiu que seu nome não constasse nos créditos deste filme) e pelos traços do ilustrador David Lloyd, “V de Vingança”, a HQ, inspirava-se na gestão britânica da dama de ferro Margaret Thatcher durante os anos 1980 para moldar uma distopia complexa e multifacetada sobre o totalitarismo; no roteiro austero e inteligente das Irmãs Wachowsky –com o qual presentearam seu diretor de segunda unidade em “Matrix”, James McTeigue, para que fizesse sua estréia como diretor –a mesma trama intrincada, desafiadora e vasta em detalhes inacabáveis é condensada com esperteza e desenvoltura cinematográfica em seus elementos mais pontuais e memoráveis; e que dizem respeito, sobretudo, à relação entre o revolucionário V (Hugo Weaving, fazendo milagres com um personagem mascarado o tempo todo) e a jovem Evey (Natalie Portman, fabulosa).

O prólogo do filme remonta a história real de Guy Fawkes que, no início do Século XVII, num dia 5 de novembro, tentou explodir o prédio do Parlamento inglês num atentado mal-sucedido conhecido como a Conspiração da Pólvora. Esse trecho não só serve para explicar o porque de seu misterioso protagonista usar uma máscara de Guy Fawkes todo o filme (máscara esta que, depois deste filme, tornou-se uma espécie de indumentária para revolucionários em geral na cultura pop), mas também para expor a percepção muito humana de sua personagem principal e narradora do filme (e indiretamente, dos próprios realizadores): A de que ideias podem, sim, transformar o mundo, mas são com as pessoas que as expressam que nos conectamos emocionalmente.

Assim, somos então levados à essa Inglaterra algo futurista, totalitária, controlada pelo governo com uma mão-de-ferro que costuma ser tão assim intransigente e esmagadora nas mais variadas traduções que o cinema oferece de tal conceito (e existem inúmeras). Nela, Evey é uma jovem salva repentinamente numa noite pelo mascarado V, da sanha impune dos chamados Finger-Man (agentes violentos que atuam para o governo e nos quais, já ali, se identifica uma perigosa corrupção moral). Na sequência, Evey testemunha o início dos planos de V: Ele explode, ao soar da meia-noite (quando começa o dia 5 de novembro), o prédio Old Bailey, alarmando as autoridades.

É, literalmente, apenas o começo: Horas mais tarde, V invade a emissora de TV onde Evey coincidentemente trabalha e, ao sequestrar toda uma equipe televisiva, faz um anúncio; dentro de um ano, exatamente no dia 5 de novembro, ele explodirá o prédio do Parlamento como um ato simbólico de um inconformismo que ele sente (e que o povo deveria sentir) pelos atos do governo. Na ocasião, Evey retribui seu salvamento ajudando-o a escapar da polícia, e com isso, acaba indo parar no refúgio onde V se esconde das autoridades.

Assim, iniciam-se as investigações para encontrar o terrorista V, conduzidas pelo inspetor Eric Finch (Stephen Rea), antes que a data-limite chegue. Contudo, o que Finch descobre, aos poucos, menos o leva em direção à identidade de V, e mais a uma série de projetos obscuros perpetrados pelo governo destinados a levar ao poder o maquiavélico Adam Sutler (John Hurt, cuja presença ecoa o referencial “1984 de Orwell”) e que levam à trágica origem de V, e do porque ele possuir uma lista muito específica de alvos dos quais, ao longo desse ano, dará cabo, um a um: Começando pelo presunçoso Prothero (Roger Allam), comunicador de TV oficial do governo conhecido como a Voz de Londres, o sórdido e abusivo Bispo Lilliman (John Standing) e culminando na cientista Delia Surridge (Sinéad Cusack).

Mas, apesar dessas fascinantes e relevantes ramificações, a trama de “V de Vingança” repousa mesmo sobre Evey, e sobre as transformações internas provocadas nela por V: De uma jovem amedrontada e alienada, ela se converte à duras penas (inclusive graças a uma questionável manobra de V lá pela metade da história) numa pessoa consciente de suas posições políticas e convicta de sua própria sensatez.

Realizado com o brilho que as Wachowsky, até então, só demonstraram mesmo em sua “Trilogia Matrix”, e dirigido por McTeigue com ferrenha e promissora habilidade, “V de Vingança” é possivelmente a mais bem feita e acertada de todas as adaptações das dificílimas obras de Alan Moore para o cinema: Nela, se percebe a genialidade inconteste para urgir tramas mirabolantes e complexas num único fluxo narrativo cheio de significado, e a capacidade para, mesmo diante desse turbilhão de informações, deixar espaço para as considerações éticas e as genuínas emoções –talvez, a grande qualidade de “V de Vingança”, o filme, seja então ter conseguido manter isso tudo em sua belíssima e envolvente transposição para o cinema.

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