Filmes sobre jovens desportistas existem aos borbotões, e “Sem Controle”, que marca ruidosamente a fase holandesa do diretor Paul Verhoeven antes de migrar para os EUA, ameaça ser uma realização nesses moldes em seus primeiros minutos de duração. Basta, porém, que as trajetórias a envolver seu trio de protagonistas comecem a revelar seus avanços para que possamos perceber a perspicácia feroz com que Verhoeven sabe transfigurar expectativas cinematográficas e distorcer pressuposições de convenção valendo-se do mais puro e afiado cinismo –algo que parece, ao menos na percepção de hoje, bastante a ver com a geração que ele diz retratar: Jovens holandeses enfastiados com a postura ‘paz & amor’ da geração anterior, turbinados pela rebeldia da emergente cultura punk, às voltas com a inconsequência e brutalidade a envolver sua nem sempre tranquila sexualidade.
Os protagonistas de Verhoeven, aqui, são Rien
(Hans Van Tongeren), Eef (Toon Agterberg) e Hans (Maarten Spanjer), todos eles
envolvidos com as disputas tumultuadas de motocross.
O mais promissor dos três, Rien sinaliza o
grande campeão que parece predestinado a ser; enquanto Eef, vindo da opressão
de uma família religiosa, é seu mecânico; resta ao desengonçado Hans ficar à
sombra desses dois na dinâmica que construíram em sua amizade.
No registro frenético, colorido e pulsante da
juventude que realiza, Verhoeven não esconde a clara influência de “Os Embalos de Sábado À Noite” em seu trabalho; inclusive, menções à John Travolta e
posteres de seus outros filmes não faltam em cena.
Entretanto, a personagem mais curiosa e
interessante do filme –e indicativa do talento e da predisposição em fazer-se
moralmente ambíguo em Verhoeven –é Fientje, interpretada com inteligência,
sagacidade e sensualidade por Renée Soutendijk (que, três anos depois, fez “O
Quarto Homem”, com Verhoeven, também ao lado de Jeroen Krabbé). Fientje é
ambiciosa e trabalha num trailer com o irmão a vender frituras durante as
corridas, em suas atitudes perante o público e os demais personagens, fica
claro que ela é movida muito menos por romantismo e muito mais por pragmatismo:
Seu alvo inicial, dentre os três amigos é certamente Rien, o qual ela não
pestaneja em roubar da dedicada namorada Maya (Marianne Boyer). Por um golpe do
destino, porém, Rien sofre um acidente e acaba confinado a uma cadeira de
rodas. O próximo alvo da lista de Fientje é, portanto, Eef, que tenta
convencê-la das finanças elevadas que possui –na verdade, Eef obtém esse
dinheiro roubando michês nas ruas de Roterdan. Numa dessas noites, ele
inevitavelmente se dá mal, e cada estuprado por um grupo de garotos de
programa. Numa manobra extremamente criticada e polemizada à época, Eef acaba
levado, pela experiência do estupro, à admitir sua própria homossexualidade
–arco dramático controverso, certamente, mas elaborado e conduzido pelo diretor
com notável coerência.
Resta à Fientje o jovem e aparvalhado Hans,
cujo desempenho nas pistas de corrida serve, quando muito, aos interesses
desprezíveis do atual campeão da modalidade e de um repórter interesseiro e
dissimulado (ambos interpretados respectivamente por Rutger Hauer e Jeroen
Krabbé, em breves papéis secundários).
Habilmente, Verhoeven jamais esquece o zelo e a
precisão ao acompanhar a narrativa de cada um dos protagonistas, gradativamente
cada vez mais distante de um mero filme sobre corridas: O confinamento do
amargurado Rien à uma cadeira de rodas, o que o leva a um ressentido reencontro
com Maya e à uma dolorosamente sarcástica tentativa de vislumbrar alguma fé em
Deus; a homossexualidade de Eef, a definí-lo como antagonista do próprio pai
com cada vez mais violência e contundência; e o caminho trilhado por Hans que,
ao cruzar-se com Fientje, parece descobrir novos atalhos para um destino algo
razoável –o que, na comparação com os apuros dos outros dois, não é algo para
se reclamar...
Pavimentando este filme curioso e sempre
envolvente sobre as aflições do jovem proletariado holandês, o estilo de
Verhoeven –que vinha de um retrato romantizado, ainda que ácido, das classes abastadas
com “Soldado de Laranja” –comparece com a ousadia que lhe é, até hoje,
habitual: Cenas explícitas de nudez e sexo, inclusive com momentos que não se
furtam de romper os limites de um filme convencional e entregar trechos
desconcertantes. Essa autenticidade na caracterização de tais cenas custou à
Verhoeven uma tremenda polêmica na época em que “Sem Controle” foi lançado na
Holanda, em 1980. Revisto hoje, com a controvérsia fazendo um sentido bem menor
em seu contexto –e diante da solidez que, nesse sentido, Verhoeven manteve em
sua carreira –“Sem Controle” é um belo e corajoso retrato de uma juventude no
limiar de suas próprias mazelas, às voltas com questionamentos e dilemas de
ordem moral e social, definitivos para seu sucesso ou sua derrocada.
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