segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Sem Controle


 Filmes sobre jovens desportistas existem aos borbotões, e “Sem Controle”, que marca ruidosamente a fase holandesa do diretor Paul Verhoeven antes de migrar para os EUA, ameaça ser uma realização nesses moldes em seus primeiros minutos de duração. Basta, porém, que as trajetórias a envolver seu trio de protagonistas comecem a revelar seus avanços para que possamos perceber a perspicácia feroz com que Verhoeven sabe transfigurar expectativas cinematográficas e distorcer pressuposições de convenção valendo-se do mais puro e afiado cinismo –algo que parece, ao menos na percepção de hoje, bastante a ver com a geração que ele diz retratar: Jovens holandeses enfastiados com a postura ‘paz & amor’ da geração anterior, turbinados pela rebeldia da emergente cultura punk, às voltas com a inconsequência e brutalidade a envolver sua nem sempre tranquila sexualidade.

Os protagonistas de Verhoeven, aqui, são Rien (Hans Van Tongeren), Eef (Toon Agterberg) e Hans (Maarten Spanjer), todos eles envolvidos com as disputas tumultuadas de motocross.

O mais promissor dos três, Rien sinaliza o grande campeão que parece predestinado a ser; enquanto Eef, vindo da opressão de uma família religiosa, é seu mecânico; resta ao desengonçado Hans ficar à sombra desses dois na dinâmica que construíram em sua amizade.

No registro frenético, colorido e pulsante da juventude que realiza, Verhoeven não esconde a clara influência de “Os Embalos de Sábado À Noite” em seu trabalho; inclusive, menções à John Travolta e posteres de seus outros filmes não faltam em cena.

Entretanto, a personagem mais curiosa e interessante do filme –e indicativa do talento e da predisposição em fazer-se moralmente ambíguo em Verhoeven –é Fientje, interpretada com inteligência, sagacidade e sensualidade por Renée Soutendijk (que, três anos depois, fez “O Quarto Homem”, com Verhoeven, também ao lado de Jeroen Krabbé). Fientje é ambiciosa e trabalha num trailer com o irmão a vender frituras durante as corridas, em suas atitudes perante o público e os demais personagens, fica claro que ela é movida muito menos por romantismo e muito mais por pragmatismo: Seu alvo inicial, dentre os três amigos é certamente Rien, o qual ela não pestaneja em roubar da dedicada namorada Maya (Marianne Boyer). Por um golpe do destino, porém, Rien sofre um acidente e acaba confinado a uma cadeira de rodas. O próximo alvo da lista de Fientje é, portanto, Eef, que tenta convencê-la das finanças elevadas que possui –na verdade, Eef obtém esse dinheiro roubando michês nas ruas de Roterdan. Numa dessas noites, ele inevitavelmente se dá mal, e cada estuprado por um grupo de garotos de programa. Numa manobra extremamente criticada e polemizada à época, Eef acaba levado, pela experiência do estupro, à admitir sua própria homossexualidade –arco dramático controverso, certamente, mas elaborado e conduzido pelo diretor com notável coerência.

Resta à Fientje o jovem e aparvalhado Hans, cujo desempenho nas pistas de corrida serve, quando muito, aos interesses desprezíveis do atual campeão da modalidade e de um repórter interesseiro e dissimulado (ambos interpretados respectivamente por Rutger Hauer e Jeroen Krabbé, em breves papéis secundários).

Habilmente, Verhoeven jamais esquece o zelo e a precisão ao acompanhar a narrativa de cada um dos protagonistas, gradativamente cada vez mais distante de um mero filme sobre corridas: O confinamento do amargurado Rien à uma cadeira de rodas, o que o leva a um ressentido reencontro com Maya e à uma dolorosamente sarcástica tentativa de vislumbrar alguma fé em Deus; a homossexualidade de Eef, a definí-lo como antagonista do próprio pai com cada vez mais violência e contundência; e o caminho trilhado por Hans que, ao cruzar-se com Fientje, parece descobrir novos atalhos para um destino algo razoável –o que, na comparação com os apuros dos outros dois, não é algo para se reclamar...

Pavimentando este filme curioso e sempre envolvente sobre as aflições do jovem proletariado holandês, o estilo de Verhoeven –que vinha de um retrato romantizado, ainda que ácido, das classes abastadas com “Soldado de Laranja” –comparece com a ousadia que lhe é, até hoje, habitual: Cenas explícitas de nudez e sexo, inclusive com momentos que não se furtam de romper os limites de um filme convencional e entregar trechos desconcertantes. Essa autenticidade na caracterização de tais cenas custou à Verhoeven uma tremenda polêmica na época em que “Sem Controle” foi lançado na Holanda, em 1980. Revisto hoje, com a controvérsia fazendo um sentido bem menor em seu contexto –e diante da solidez que, nesse sentido, Verhoeven manteve em sua carreira –“Sem Controle” é um belo e corajoso retrato de uma juventude no limiar de suas próprias mazelas, às voltas com questionamentos e dilemas de ordem moral e social, definitivos para seu sucesso ou sua derrocada.

Uma realização cheia de ousadia, energia e talento, plenamente digna de um grande diretor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário