Virou uma unanimidade, quando do lançamento da versão cinematográfica de “Cats”, o ato de desprezar o filme como uma equivocada adaptação da lendária peça musical da Broadway de autoria de Andrew Loyd Webber. Críticos e público escarneceram a obra como uma afronta ao bom gosto, um lapso absoluto e injustificável, um sofrimento de cento e dez minutos ao qual o expectador era submetido.
A verdade talvez seja que “Cats”, o filme,
pertence a uma categoria inusitada e complicada de realização cinematográfica:
Um filme para apreciações particulares, cujo amar ou odiar, está imensamente
relacionado ao momento, e ao estado de espírito, ao qual cada expectador chegou
nele –e certamente, a ida ao cinema, quando era um lançamento rondado até por
expectativas de indicações ao Oscar, não era a circunstância mais apropriada.
Passado o tempo, a revisão de “Cats” sob a
pecha de filme incompreendido, de produção mal-fadada e indiscutivelmente
estranha, adquire certa compaixão do público, e –ouso dizer –haverá, sim, até
quem possa apreciá-lo.
Num cenário de beco londrino agigantado –onde
já ficam em evidência os vultuosos recursos do diretor Hooper –vemos bailarinos
travestidos como gatos –em caracterizações que vão muito além do mero figurino
teatral e que simulam uma controversa (e até sexualizada) realidade animal
(repare nos interessantes movimentos digitais de suas orelhas!). Esse grupo de
gatos de rua, auto-intitulados Jellicle Cats já na primeira música, recebe uma
forasteira: Trata-se de Victoria (a bailarina Francesca Hayward), deixada no
beco dentro de um saco de pano.
Delicada e bem-cuidada, Victoria se inteira da
estranha rotina do lugar: Eis que ela chegou exatamente na aguardada noite em
que, uma vez por ano, os Jellicle Cats testemunham um gato de rua ser escolhido
para ascender ao Paraíso dos Gatos –um lugar essencial à simbologia fantasiosa
da trama.
No decorrer daquela noite, Victoria –cujo fato
de ser uma espécie de novidade no beco desperta o interesse de todos os tipos
–conhece os inúmeros pretendentes à essa sublime dádiva: Jennyanydots (Rebel
Wilson), uma gorda e hedonista gata de apartamento; Bustopher Jones (James
Corden), apelidado ‘Gato de Polainas’, um felino glutão e bonachão dedicado a
vasculhar latas de lixo atrás de comida; Gus (Ian McKellen), um velho gato
sonhador cujo passado de aplaudidas apresentações a muito ficou para trás;
Skimbleshanks (Steven McRae), gato sapateador e morador da estação de trem; e
Grizabella (Jennifer Hudson) outrora uma gata de estimação de socialite, cujas
más escolhas à levaram a viver nas ruas, menosprezada até mesmo por seus pares.
Além deles, Victoria conhece também a
benevolente Madame Deuteronomy (Judi Dench), a gata que escolherá o graciado da
noite. o bondoso mágico Mr. Mistoffelees (Laurie Davidson), os gêmeos ladrões Mungojerrie
e Rumpleteazer (Danny Collins e Naoimh Morgan), o intratável gato malandro e
conquistador Rum Tum Tugger (Jason Derulo), e o perverso Macavity (o magnífico
Idris Elba), gato cheio de truques (mágicos, inclusive!) que almeja valer-se de
seus aliados (a gata hipnótica e exuberante Bombalurina vivida pela cantora
Taylor Swift e o feroz e maltratado gatão Growltiger interpretado por Ray
Winstone) para tirar da jogada todos os seus concorrentes e forçar Madame
Deuteronomy a escolhê-lo para ir ao Paraíso dos Gatos.
De uma linguagem toda própria já nos palcos
–onde a humanização de personagens felinos era apenas o princípio de sua
proposta lúdica –“Cats”, nesta transposição cinematográfica, recebeu do diretor
Tom Hooper um tratamento efusivo, radical e corajoso. Não apenas a
caracterização de seus personagens é um gesto que gera amor e ódio em
proporções elevadas conforme o público, mas todas as suas escolhas (câmera na
mão em diversas sequências musicais; ponto eletrônico com captação de som real
durante as canções) depõem a favor desse conceito incontido, despido de pudor.
Como fez em “Os Miseráveis”, Tom Hooper opta
pelo arrebatamento, pela emoção irrestrita a embriagar a plateia, entretanto,
naquela ocasião, ele tinha os talentos de Hugh Jackman e Anne Hathaway como
terreno sólido onde caminhar, aqui ele encontra mais instabilidade.
Nessa ênfase resoluta –e, a sua maneira,
generosa –que faz de suas encantadoras qualidades tanto quanto de seus
gritantes defeitos, “Cats” é um trabalho que se presta ao escrutínio, embora
insista na brilhante iniciativa de sempre fazer com que a luz refletida na tela
leve o público a lugares mágicos, cheios de assombro e emoções às vezes
cafonas, para neles descobrir-se afetado pela arte.
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