sexta-feira, 21 de maio de 2021

Alice


 A lindíssima Sylvia Kristel foi o sonho erótico de toda uma geração. Não obstante seu grande sucesso em nichos obscuros (e para alguns, questionáveis), ela usufruiu do patamar que alcançara como símbolo sexual para perseguir projetos de maior qualidade. Um deles vem a ser este “Alice” –ou “A Última Fuga”, seu subtítulo –realizado por Claude Chabrol em 1977.

Essencialmente, “Alice” é uma narrativa metafísica que envolve a expiação de sentimentos e relacionamentos que usa da analogia com o conto de Lewis Carroll, “Alice No País das Maravilhas”, para na maior parte do tempo despistar o expectador.

Linda (e ainda vestida!), Sylvia Kristel surge em cena interpretando Alice Carroll (referência mais explícita, impossível!) que, já na primeira cena, dá um basta em seu marido egoísta e presunçoso (Jean Cherlian).

Ignorando os apelos dele para que fique, ela arruma as malas e parte com seu carro estrada afora. Em meio a esse drama doméstico, Chabrol deposita pequenos detalhes que remetem ao simbolismo na narrativa do conto clássico de Lewis Carroll, em especial, o uso dos buracos: O buraco que representa a aliança que Alice remove do dedo; e o buraco no vidro do para-brisa do carro quando ela sofre um súbito acidente.

É esse contratempo que leva Alice –agora a pé e debaixo de uma chuva torrencial –a pedir abrigo numa mansão localizada nas imediações da estrada deserta que tomou. Lá, dois senhores estranhamente solícitos a recebem de braços abertos –o Chapeleiro Maluco e a Lebre Aloprada, talvez?

Chabrol é habilidoso em manter sempre uma atmosfera onírica, como se a protagonista tivesse a partir daí mergulhado em uma dimensão distinta, repleta de mistérios e segundas intenções.

O grande porém da obra de Chabrol é que seu trabalho na direção detalha brilhantemente clima e contexto sem, entretanto, ter muita história para ser contada, pois, a partir do momento em que se hospeda naquela solitária mansão, Alice se vê prisioneira. E o filme se resume então ao registro de sua perplexidade, nos encontros e desencontros com personagens que nada acrescentam (e nem parecem querer acrescentar) à solução de seu problema: Ela não consegue sair da propriedade. A mansão se encontra desabitada (nem sinal dos dois senhores, o proprietário e o mordomo, que ela viu na noite anterior), nem sinal de estradas (quando muito, há árvores caídas obstruindo a passagem do carro), e um muro –que antes nem estava lá! –cerca todo o perímetro do terreno, sem apresentar portões por onde passar!

Ela é mantida ali, por forças desconhecidas. Surge sempre comida à mesa para ela preparar, e embora vez ou outra apareçam transeuntes (que talvez correspondam aos personagens criados por Carroll em seu clássico, como a Rainha Vermelha, avistada em duas cenas do filme), eles deixam claro que não irão responder nenhuma de suas inúmeras perguntas.

Tal como “Alice No País das Maravilhas” –onde vemos a criança imatura experimentar as agruras de um mundo surreal para entender o conforto da vida real que antes repudiava –a Alice de Claude Chabrol se defronta com as asperezas do incerto quase como um teste de fogo à vida emancipada que almeja. Aos poucos, ela compreende parte da enigmática encrenca em que se meteu: Que a chance de escapar (ou não) tem ligação com o tempo e com o relógio quebrado, cujo pêndulo só volta a funcionar numa determinada hora; quando escapar dali se torna possível.

Os desdobramentos e principalmente a resolução de “Alice” encontram explicação nas próprias temáticas pessoais da carreira de Claude Chabrol –a junção, seja no drama, seja no suspense, entre o sexo feminino (ou sua representação cinematográfica simbólica) e a morte. Esse detalhe está bastante claro no desfecho, ainda que essa concessão (o momento que que tudo se explica) tire muito do brilho de “Alice” ao deixar mastigadinho para o público o esclarecimento de seu enredo, cuja força antes estava justamente em não se deixar compreender por inteiro.

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