quarta-feira, 14 de julho de 2021

A Terra do Silêncio e da Escuridão


 Fini Straubinger tinha cerca de nove anos quando levou um grande tombo nas escadas do prédio onde ficava sua residência –tão grande que ela chegou a despencar do terceiro para o segundo andar! –nos dias decorrentes, a menina sofreu de fortes dores de cabeça, mas o pior viria anos mais tarde: Aos quinze anos, ela começou a ficar cega (!) e aos dezoito, completamente surda (!!).

Fini Straubinger é também, do alto de seus 56 anos de idade, a protagonista deste árduo documentário, concebido por Werner Herzog em 1971, dedicado a elucidar as circunstâncias inóspitas com as quais tentam viver as pessoas que sofrem simultaneamente da mais completa deficiência auditiva e visual –leia-se, são cegas e surdas –a viver, portanto, num mundo isolado de imagens e comunicação.

É, à princípio, uma situação quase inconcebível para indivíduos comuns, e Herzog vale-se muito da pouca informação que se tem sobre isso para tornar seu filme fascinante. E necessário também: Nos percalços que acompanhamos, Fini Straubinger é convertida numa espécie de guia da narrativa. Através dela, descobrimos maiores detalhes sobre sua dolorosa superação –como ela atravessou a amargura do isolamento e a impotência inerente à sua condição para conseguir comunicar-se –e sobre a missão de vida que ela passou então a tomar como sua: A busca para livrar outros, acometidos pela mesma celeuma, da inércia, da infelicidade e do distanciamento.

Assim, em meio aos casos que nos são apresentados ao longo do filme, acompanhados pela própria Fini, três deles fazem uma curiosa observação subliminar da parte de Herzog: Os dois jovens, nascidos já cegos e surdos –e cujos conceitos de felicidade, orgulho ou tristeza, como afirma um dos especialistas, somos incapazes de presumir –os quais passam por um dedicado processo de aprendizado a fim de construírem uma mínima capacidade de interação; o caso do jovem, também nascido cego e surdo, mas que não recebeu qualquer orientação do pai, o único que lhe criou, o que tornou o rapaz um indivíduo de comportamentos alheios e ilegíveis; e, por fim, o rapaz nascido surdo, mas que também perdeu a visão com o tempo, o que levou-o, mais tarde (graças inclusive à negligência familiar), a perder também a capacidade de falar e de escrever. Justapostos em alarmantes ênfases a essa aflição silenciosa, esses casos parecem deixar clara a importância que a linguagem tem para a formação da personalidade e do intelecto, inclusive no que diz respeito ao desenvolvimento da consciência de elementos abstratos como a solidão, ou mesmo de valores absolutos como o bem e o mal.

A filmografia de Werner Herzog é toda ela pontuada por protagonistas cujo objetivo de vida norteou-lhes até seus próprios limites existenciais –não raro convertendo-os em párias –e aqui, não obstante o fato desta ser uma vassaladora história real, não é diferente. Fini Straubinger exibe a mesma retidão, convicção e inflexibilidade de outros heróis aos quais Herzog dedicou a atenção de suas lentes. E não são poucos os momentos em que ela surpreende o público com uma articulação espantosa e uma compreensão arguta  do papel que ela mesma exerce nas desoladas pessoas que visita, às quais busca levar esclarecimento, dignidade e, talvez o mais importante, a consciência de que, em seu tormento silencioso e sombrio, eles não se encontram, afinal, sozinhos.

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